quarta-feira, junho 02, 2004

Fiel era um pastor mucubal

(Capítulo I)


Desde manhã cedo que era grande a azáfama junto à praia e ao longo do cais. Camionetas carregavam e descarregavam sacos, caixotes e todo o tipo de mercadorias. Gente a correr apressada, abraços de encontros e despedidas, gritos, algazarra. Era dia de navio.
Acostadas ao cais, grandes barcaças recebem as cargas directamente das costas dos negros para as levarem depois até aos guindastes do navio que ficou ao largo, fundeado lá longe por falta de porto e de fundo. Era uma operação lenta e cheia de percalços que, começando de manhãzinha, por vezes terminava pela noite dentro.

(porto de Moçâmedes na primeira metade do séc.XX)


Moçâmedes daquele tempo era uma pequena cidade de cerca de dez mil habitantes encravada entre o deserto e o mar. Casas baixas e ruas de traçado rectilíneo, provavelmente ainda uma herança do Marquês, e uns quantos armazéns e fábricas de transformação de peixe junto à praia. Intermináveis tabuleiros com peixe a secar ao sol davam à terra um cheiro característico.
O que parece ter estado na sua origem, foi o desembarque naquela baía, em meados do século dezanove, de uma centena de portugueses vindos de Pernambuco, no Brasil.
Anos mais tarde, uma linha de caminho de ferro, descendo das terras altas do interior, veio encontrar ali o seu términos.
Mas hoje há algo de diferente. Depois de uma longa viagem enfiados nuns vagões do caminho de ferro, uma manada de bois chegou de madrugada e aguarda na praia a sua vez de embarcar.
Fiel, um pastor Mucubal que trouxe o gado até ali, com a ajuda de uma vara comprida vai mantendo os animais junto ao mar enquanto espera ordens do branco que comprou os bois e engendrou aquele negócio de mandar o gado vivo para a Metrópole.
O comerciante, o senhor Correia, anda desde cedo em grande correria à procura do comandante do navio que veio a terra assistir ao embarque e falar com o veterinário, mas entretanto perdeu a noção das horas nos braços de uma bubulina local. Desde a primeira vez que ali aportou que aquilo passou a fazer parte dos seus rituais de viagem, e o navio não sai se não se cumprirem. São procedimentos obrigatórios nestas navegações de alto mar, senhor Correia. Dizia ele ao afogueado comerciante quando este finalmente o encontra no bar do hotel, com um suculento bife com dois ovos a cavalo à frente e uma viúva espampanante toda de folhos e olhos derretidos ao lado. Tenha calma homem, você tenha calma, tem as papeladas todas em ordem não é verdade? Então sente-se e beba aqui uma cerveja com a gente, que o navio não sai sem mim.
A princípio não foi fácil convencer os animais a embarcar. Mas um a um, de olhos vendados, o pastor lá os foi conduzindo por uma rampa de tábuas, com alguns trambolhões pelo meio, para dentro das barcaças. Mais tarde, já encostados ao navio, foi mais fácil. Bastou colocar-lhes umas cilhas por baixo da barriga e logo eles se elevavam no ar içados pelos guindastes a caminho do porão. Fiel não sabia contar, mas isso não impedia que, no meio daquelas dezenas de animais, se faltasse algum, ele não desse imediatamente por isso. Um mistério!
Nessa primeira noite, acabou por adormecer entre os fardos de palha e os sacos de ração que também embarcaram para que os animais não morressem de fome durante os quinze dias de clausura que tinham pela frente.
Tinha ficado combinado com o comandante que o pastor acompanharia o gado até Lisboa e que quando o navio voltasse a descer até ali, um mês ou dois depois, dependia, o trariam de volta.
Parecia bom tipo, o comandante. Logo nos primeiros dias avisou a tripulação para que deixassem o homem em paz e não o chateassem por causa do seu ar primitivo. É que alguns deles estranharam demais a sua tanga, os seus enfeites e hábitos e exageravam um pouco na curiosidade. Levou algum tempo a aprenderem a respeitar aquele homem que quase não falava mas sorria para toda a gente e executava as suas tarefas de tratador de gado com desvelo.
Ao fim de vários dias ainda ninguém o tinha conseguido convencer a largar os bois por uns momentos e subir ao convés a ver o mar. Os balanços e o enjoo eram tão estranhos para si como para os seus companheiros de viagem, e mantinha-se junto deles no porão com a única preocupação de lhes ir mudando a palha e providenciar água e ração quando achava que era preciso. Ia esquecido de si, o que ajudava a suportar a tormenta, e quando podia parar uns instantes sentava-se, fechava os olhos e adormecia.
Só quando foi preciso deitar borda fora um bezerro que nasceu morto, é que ele se encheu de coragem e subiu ao convés com o bicho aos ombros, todo ensanguentado, e depois se lavou com um balde de água salgada. Uma vaca que vinha grávida, com os sobressaltos da viagem, tinha abortado. Ele ainda tentou em desespero salvar o animal, mas não foi capaz. Agora havia que tratar da mãe. Ofuscado com aquela luminosidade tão intensa à sua volta, procurava falar ao comandante, queria explicar-lhe o sucedido, e pedir-lhe uma garrafa de vinho. Tinto, se houvesse.
Quando avisaram o comandante foi uma risota geral entre a tripulação. Atão vocês não percebem? Dizia um mais boçal, a mim também se me morresse um filho ao nascer eu havia de querer beber para esquecer. E ria-se. Mas o comandante não se riu, e quis saber mais. Desceu ele próprio da ponte para se inteirar junto do Fiel sobre o que se estava a passar. Este explicou como pôde que o vinho não era para ele, era para dar à vaca. Já tinha visto os brancos fazer aquilo quando uma vaca estava fraca do esforço, e costumava resultar.
O comandante mandou buscar uma garrafa de vinho da pipa da despensa e desceu com o pastor ao porão. Não que estivesse desconfiado, mas porque quis acompanhar aquele momento que parecia tão importante para o pastor. Era bom que os animais aguentassem a viagem com saúde. E que diabo, a vaca também era passageiro, ou não? Havia de se lembrar de escrever isto mais logo à noite no Diário de Bordo.
O comandante, que todos os dias dava uma volta pelo navio para ver como estava tudo, no dia seguinte, quando terminava a sua ronda foi certificar-se que a vaca estava de facto a arrebitar, e convidou o pastor a subir à ponte de comando com ele.

Fiel olhava com espanto para todos aqueles aparelhos complicados e aquela roda gigante ali no meio, enquanto ouvia as explicações. Era com ela que se guiava o navio, dizia o comandante. Ele sorria, sorria sempre que alguém lhe falava. Com aquele sorriso alegre e espontâneo, mesmo se às vezes não entendia o que lhe diziam, desarmava qualquer animosidade que pudesse surgir. Sempre com os olhos a brilhar, olhava para tudo e bebia cada uma das palavras, as que conhecia e as outras. Essas procurava fixa-las, mais tarde viriam provavelmente a ganhar um significado. Entretanto ouviu-se uma voz por cima das cabeças e ele assustou-se. O comandante riu-se e explicou-lhe apontando o pequeno auto falante no tecto, isto é a voz do maquinista que sai por aqui, ele fala lá em baixo da casa das máquinas e nós ouvimos aqui, assim não precisamos de andar sempre a correr para baixo e para cima. Também podemos falar para ele, queres ver? E aproximou-se dos comandos, ligou um interruptor e falando um pouco mais alto: Alô Gervásio, está a ouvir-me? Esperou uns segundos e depois ouviu-se a resposta. Sim, comandante, é o Gervásio, estou a ouvi-lo... É que temos aqui uma visita na ponte que lhe vai dizer qualquer coisa. E dirigindo-se ao Fiel disse-lhe para ele falar, mas tinha que falar alto para o Gervásio poder ouvir e depois responder. Fiel perdeu parte do sorriso e ficou hirto sem saber o que fazer e muito menos dizer. Ali ao lado, o imediato e o piloto observavam em silencio a cena desde o início e faziam força para não rir. Então Fiel, fala lá, insistia o comandante. Fala... Mas falar o quê? Perguntava atrapalhado o pobre do homem que não entendia como é que se podia falar sem ter assunto. Vá lá, diz... qualquer coisa. E ele disse: Qualquer coisa! Disse para o ar, sem perceber bem o que dizia. Os outros dois não aguentaram e explodiram, não conseguiram conter-se mais e soltaram as mais sonoras gargalhadas que alguma vez se ouviram naquele navio. O comandante, morto de riso também mas mais contido, tentava em vão responder ao Gervásio que do outro lado dizia qualquer coisa, mas não se conseguia perceber, no meio daquela gargalhada geral. E o Fiel ali no meio, quieto, sem entender.
Alô Gervásio , está a ouvir-me. Está a ouvir-me, Gervásio? Lá conseguiu finalmente falar e ouvir o maquinista, depois dos outros saírem agarrados à barriga para o lado de fora da ponte. Já percebi, comandante, já percebi que tem aí consigo o nosso amigo Fiel. Foi-lhe aí fazer uma visita, foi? Então Fiel, que tal achas a vista aí de cima, ãh? Já se vê o puto? ( o puto, era uma expressão mais ou menos generalizada na época para designar a Metrópole, Portugal Continental) O comandante fazia-lhe sinal que era para ele que outro estava a falar. Sim senhor, respondia o Fiel muito direito, com aquele ar que têm os cegos que não vêem com quem estão a falar. E como é que estão os bois, ó Fiel? Quando é que comemos uns bifes? Perguntava o outro do outro lado, a rir-se também. O Fiel estava embaraçado, perdera o sorriso, e fazia um esforço para entender o que teria feito rir os outros daquela maneira. O comandante percebeu e resolveu acabar com aquele constrangimento. Pôs-lhe um braço sobre o ombro e respondeu ele ao maquinista. Ok Gervásio, o Fiel agora não está para aí virado, mas vamos combinar um jantar de churrasco um destes dias. Obrigado e vou desligar. E desligou o interruptor.
Quero mostrar-te aqui uma coisa. E ainda com o braço sobre os ombros do pastor, encaminhou-o para a mesa das cartas ali ao lado. Vou-te mostrar onde é que nós estamos. Nós estamos aqui, e apontou para um ponto sobre a carta, onde estavam escritos uns rabiscos a lápis. Estás a ver, isto aqui é a terra, nós partimos daqui. E apontava um outro ponto mais a baixo. Já fizemos este caminho todo. E seguia o risco traçado na carta desde o porto por ali a cima. E ia assinalando as várias marcas ao longo do risco, estás a ver? Aqui é um dia, dois dias, três dias. O Fiel, com um ar intrigado, olhava a carta e olhava o mar todo em volta através das grandes vigias. Agora estavam os dois sozinhos, os outros dois tinham saído entretanto, devia-lhes ter dado a sede de tanto rirem.
Mas me explica uma coisa, perguntava o Fiel, como é que no meio desse mar todo, sabes onde é que estás a ir? Boa pergunta!
O comandante tirou de uma caixa ali ao lado uma bússola e saiu com ela para fora da ponte. Chega aqui que vou te mostrar. E com a bússola na mão, mostrava ao outro. Estás a ver aqui esta seta? Ela aponta sempre para o mesmo sítio, estás a ver? Ali é o norte. E ia rodando devagar para um lado, depois para o outro, e era verdade, a seta apontava sempre na mesma direcção, a proa do navio, por mais voltas que se desse.
Fiel quis experimentar e pegou na bússola, primeiro a medo e depois divertido.
Ué! Parece feitiço, e ria-se nervoso enquanto rodava, uma vez e outra, e outra ainda mais bruscamente, a ver se enganava a seta. Mas não, ela lá voltava sempre ao mesmo sítio. Ué! Esses brancos...
Lembrava-se de já uma vez ter visto uma coisa parecida na mão de um engenheiro com quem se cruzou. Vinha num jeep, e já nessa altura tinha ficado curioso. Mas isso é quê, afinal? Perguntou intrigado com aquele mistério. Isto é uma bússola, explicou o comandante, aponta sempre para o norte. E ali à frente da roda do leme está outra igual a esta, maior, e é com ela que a gente se orienta.
Mas, e como é que ela sabe e aponta sempre no mesmo sítio? Pergunta ele desconfiado. O comandante tentava encontrar uma explicação simples. Esta seta é um íman que é atraído pelo pólo magnético que fica perto do... e parou. Não, esta explicação que lhe parecia simples, talvez não fosse a mais adequada. Calou-se uns instantes, e depois recomeçou. Sabes, daqui ainda não se vê, mas mais alguns dias e eu vou te mostrar. Há uma estrela, que a gente chama de estrela polar, e que está sempre no mesmo sítio, nunca muda. Há de aparecer ali à frente. E apontava para a linha do horizonte por cima da proa do navio. O Fiel ouvia-o com atenção, tentando perceber. Já viste que de noite as estrelas, todas, vão andando devagarinho e passam de um lado para o outro do céu, não viste? O outro abanava a cabeça que sim. Isso, mas há uma, essa tal estrela polar, que nunca se mexe, não sai do mesmo sítio, fica lá sempre no cimo da terra, que nós chamamos o Norte. Assim que ela aparecer eu mostro-te. E houve uns homens antigos que descobriram que este metal, uma espécie de ferro, está sempre a apontar na direcção dessa estrela. Percebes? Ele dizia que sim com a cabeça, mas com pouca convicção. E depois de pensar um pouco... Mas então pra ir no puto é só seguir onde a seta diz? É mais ou menos isso, sim, concordava o comandante. Como estamos a navegar para norte e a seta aponta para o norte... Ah! Afinal é fácil, então. Dizia o Fiel que parecia ter descoberto a pólvora. Mas depois calou-se e ficou mais uns momentos pensativo. Mas então... retomava o raciocínio. Quando estás a vir do puto para cá? E calou-se de novo, intrigado. Aí a seta aponta para trás, disse o comandante. E como é que vais saber então aonde estás a ir se a seta aponta para trás? Tinha lógica. Olha, disse-lhe o comandante, como tu vais voltar depois connosco lá da Metrópole para Moçâmedes outra vez, aí eu explico-te. Combinado? E vais ver daqui as uns dias, assim que ela aparecer eu mostro-te, a tal estrela polar. Sim senhor, disse o Fiel, interessado, para quem combinado era combinado. Mas sô comandante, posso ver ainda ali outra vez? E apontou para a carta que tinha estado a ver há pouco. Eu mostro-te, e entraram. O comandante voltou a pegar na carta e apontou-lhe de onde tinham saído e onde estavam agora. O Fiel olhava em pormenor para ver se percebia o que via, e nisto o comandante lembra-se. Espera aí, que eu tenho aqui outra melhor. E tira uma de uma gaveta larga cheia de cartas, e põe por cima da primeira. Esta é melhor, olha para aqui.
Aquela era diferente, além do mar e da linha da costa, tinha também um grande pedaço para o interior do território. Estás a ver Moçâmedes aqui? A tua terra é aonde, como é que se chama? Virei, disse ele. O quê? Perguntou o comandante, que não tinha percebido. E ele repetiu, Virei. A tua terra chama-se Virei? É, a minha terra é no Virei, sim senhor.
Virei, disse o comandante, saboreando a palavra, bonito nome! Ora deixa cá ver se se vê aqui.... Numa terra que era um imenso deserto, não foi preciso procurar muito. Além de duas cidades, havia para aí mais meia dúzia de pequenos povoados, e lá estava. É isto aqui, e com um dedo por cima indicava o sítio. Numa letra pequenina conseguia ler-se, Virei, no meio do deserto talvez a uns duzentos quilómetros do mar.
Isto aqui é Moçâmedes, ali fica Sá da Bandeira, estás a ver? E esta linha aqui é a linha do comboio onde tu vieste com o gado. O Virei é aqui mais em baixo. E o Fiel baixava a cabeça sobre o mapa a tentar ver algum pormenor, alguma coisa que ele reconhecesse.
Mas isso...quem é que fez isso assim? Perguntava ele intrigado. Como é que foram saber que esta terra é aqui que aquela é ali? E apontava. Aqui parece tudo perto, mas é looonge! E prolongava o ó para sublinhar a distância. O comandante sorria e dizia, tentando simplificar, que antigamente era difícil saber mas que agora com os aviões, eles tiravam fotografias lá do ar cá para baixo e depois faziam os mapas.
E o Fiel a tentar vislumbrar a sua terra no mapa, confuso, entretanto lembra-se dos bois. Bem, tenho que ir. Disse ele. Já estava há muito tempo longe dos bichos e isso não era bom, tinha que voltar.
E quando se despedia e se preparava para descer, cruza-se com os dois de há bocado que vêm de volta, bem dispostos. E diz um deles. Então Fiel, o senhor comandante já te ensinou a trabalhar com o sextante? Olhe que já faltou mais, disse o comandante. Já faltou mais! O Fiel quando voltar, e já não tiver os bois para cuidar, quem vai ser o piloto vai ser ele ele. Vocês podem tirar umas férias. E despediu-se dele com uma palmada nas costas.
Fiel voltava para os seus animais com a cabeça cheia de coisas novas para pensar. Um imenso puzlle, e faltavam tantas peças!

O navio não levava passageiros, além da tripulação só vinha o Fiel a bordo, e o comandante tinha dito ao imediato que lhe disponibilizasse um beliche na proa junto da marinhagem, e que tomaria as refeições junto com a tripulação. Mas como ele nos primeiros dias nem saía do porão, sempre enjoado, sempre junto dos bois, o cozinheiro Almeirim começou a levar-lhe todos os dias uma marmita com comida.
Ao Almeirim, cujo verdadeiro nome era Custódio, e que desde que entrou para a Marinha e depois embarcou ali nunca mais tinha voltado à terra, aquele cheiro a gado fazia-lhe muitas saudades. E era sempre com prazer que descia ao porão, de cada vez que levava o almoço ao Fiel. Normalmente passava por ali um bocado da tarde até que fosse preciso ir tratar do jantar. Era engraçado que o cheiro das vacas, que lhe era tão familiar, o daquelas tinha qualquer coisa que o intrigava, que era diferente. Parecia-lhe mais agreste, mais selvagem, qualquer coisa que não conseguia explicar. Seria com certeza dos pastos que eram diferentes, do clima, e não conseguia deixar de pensar, como cozinheiro, nos belos bifes que um animal daqueles daria. Mas não falou nisso ao Fiel, os bois não eram dele. E nem podia imaginar o que o outro iria sentir quando se separar deles à porta do matadouro.
Nos trópicos anoitece cedo, e um fim de tarde em que o cozinheiro regressava à cozinha depois de ter estado a ajudar o Fiel a mudar a palha do gado, este subiu com ele ao convés e ficaram um pouco a ver o pôr do sol encostados à amurada. Deviam estar por alturas do equador e naquela altura do ano era época de grandes calmarias naquela zona. O navio seguia agora sem balanços num mar chão, e a única brisa era da própria deslocação do navio. Com o pôr do sol o tempo refrescava um pouco e o Almeirim perguntou. Ó Fiel, tu vais desembarcar em Lisboa assim como andas vestido? E olhava para ele que só trazia em volta da cintura uma coisa que não se percebia bem se eram uns calções, se uma tanga, se quê. E além disso lá faz frio, não é como na tua terra! Na minha terra à noite também é frio, tenho casaco. Respondeu ele, que tinha de facto trazido um velho casaco comprido que lhe dava pelos joelhos. Mas isso não chega, não trouxeste mais nada? Nem sapatos... O outro não parecia dar muita importância ao assunto e continuou a olhar o mar com o nariz apontado ao vento. Era bom sentir aquele cheiro novo e fresco. Mas o que o maravilhava mesmo, era quando conseguia ver um peixe voador. Parecia uma criança. Ué! Olha ali, olha só, e ficava a segui-lo fascinado até que ele mergulhasse de novo no mar.
O Almeirim, depois de lhe ter passado aquele enjoo inicial, insistiu com o Fiel para que viesse comer à cantina junto com ele e com os outros, até tinha sido uma ordem do comandante, dizia ele, e depois de alguma resistência, ele lá acabou por ir. Mas uma única vez. Achou tudo muito barulhento, eles falavam todos muito depressa e todos ao mesmo tempo enquanto comiam, e ele não percebia nada. Riram-se dele por comer com as mãos e de outras coisas que ele não percebeu nem se interessou por perceber. Preferiu ficar no seu canto, sossegado e em silêncio.
Passou a só ir à cozinha quando só lá estava o Almeirim, normalmente a meio da manhã enquanto ele preparava o almoço. Bebia uma boa chávena de café bem quente e, quando era preciso, ajudava-o a descascar as batatas.
Quanto tempo faltaria para chegar ao tal puto?



Há dois ou três dias tinham passado a linha do equador e aproximavam-se das ilhas de Cabo Verde. O Fiel estava preocupado com a saúde dos animais, alguns deles tinham deixado de comer e estavam muito enfraquecidos, receava que começassem a morrer. Pediu que avisassem o comandante, e este foi pessoalmente ver o que se passava. Mostrou-lhe as vacas prostradas que, por muito que se insistisse, se recusavam a comer. Porque seria? Talvez a tristeza, arriscava o Fiel. Mas o comandante não ia nessa da tristeza, e pensando se não estaria para ali a germinar alguma epidemia, resolveu perguntar via rádio para S. Vicente em Cabo Verde se havia algum veterinário na ilha.
Acabava de receber a resposta. Afirmativo, havia um veterinário na cidade do Mindelo, e ele insistiu com o rádio-telegrafista para que tentassem localizar o homem, e se possível, pô-lo em contacto com o navio.
Era tarde e já dormia quando o foram buscar para o levarem à ponte. Fiel subiu as escadas meio estremunhado, sem saber bem ao que ia, mas se o comandante chamou....
O comandante tinha o tal veterinário em linha e queria saber mais pormenores. Tenho aqui o homem, ouviu ele dizer, já tenho aqui o homem e talvez ele possa explicar, vamos ver doutor, aguarde um instante. E virando-se para o Fiel explicou-lhe que agora era uma coisa séria, que não era brincadeira como no outro dia, estava um doutor veterinário no rádio e queria saber muito bem o que é que se estava a passar com os animais. Tens que explicar. Sim senhor, disse ele muito sério. E explicou como pôde, respondendo às perguntas que ouvia sair do aparelho. O médico tentava fazer um diagnóstico mais ou menos aproximado. Dentro de quanto tempo calcula chegar aqui a S. Vicente? Perguntou. Eu posso estar no porto à vossa chegada. E assim aconteceu.
O veterinário chegou à conclusão que, devido às condições do transporte e ao calor no porão aqueles animais estavam com problemas respiratórios, e era isso que os debilitava. Com um tratamento de antibióticos aguentar-se-iam até à metrópole, disse ele.
Isto tranquilizou um pouco o comandante, mas ao Fiel nem tanto. Levar um animal para o matadouro, se tiver carne ainda tem justificação, mas assim magro, iam matar para quê? Era uma pergunta que ele se fazia.
Estiveram dois dias atracados no Mindelo, o tempo necessário para se fazer um carregamento de banana verde, e para o gado ser examinado e medicado na medida do possível.
Os marinheiros gostavam muito de fazer escala naquele porto, e quando havia tempo, pelavam-se por uma ida a terra. Era um sítio onde, apesar de uma população muito pobre, havia imensas tabernas e música por todo o lado. Ali, um marujo com algum dinheiro no bolso era um senhor. A população vivia muito ligada ao mar e à pesca, e os homens que não tivessem ainda emigrado, eram quase todos candidatos a marinheiros ou a clandestinos. Os que estavam emigrados tinham deixado para trás uma população feminina algo numerosa, que era das coisas que fazia daquela ilha um sítio muito apetecido. Muitas mulheres sozinhas ou abandonadas, muita dança e muito álcool, podia ser uma mistura explosiva. O comandante avisou, como já tinha feito outras vezes, que não queria bebedeiras a bordo nem zaragatas em terra. Quem fosse entrar de serviço tinha que estar pronto e a horas. E além disso havia outra coisa, o navio durante a noite tinha que ser muito bem vigiado, qualquer distraçãozinha e, não seria a primeira vez, furtivos clandestinos enfiavam-se pelo navio como ratos. Em todas as ilhas é assim, não era só naquelas. Por isso não iriam todos a terra ao mesmo tempo. Além dos que estavam de serviço, tinha de ficar mais alguém a bordo.
O Almeirim ainda desafiou o Fiel a ir a terra, mas ele não quis. Preferiu ficar por ali, pela amurada, a sentir os cheiros e a observar as pessoas de um lado para outro falando alto, e a tentar perceber aquele linguajar tão estranho das mulheres que vendiam frutas e peixe nuns alguidares no chão, e as crianças que riam e gritavam de cada vez que vinha um peixe, sentadas com as linhas na beira do cais. Além disso tinha os animais para cuidar, sobretudo aqueles a quem o doutor tinha receitado tratamento.
Acordou a meio da noite sentindo alguma agitação nos animais, apurou o ouvido e pareceu-lhe ouvir uns ruídos no meio da palha. Levantou-se e foi ver. Pareciam-lhe gemidos, estava escuro e tacteando, de repente tropeçou nuns pés que se encolheram com o susto. Quem está aí? Perguntou ele também assustado. Epá sou eu, ó Fiel, sou eu, o Almeirim. E com ele ali deitada, agora se via, uma mulher meio despida. Mas... o Fiel não sabia bem o que dizer. Eh pá, tive que trazer a moça para aqui, não a podia levar lá para cima que somos cinco no quarto. Desculpa lá se te acordei, ela mais logo já vai embora, podes ficar descansado.
E o Fiel encolheu os ombros e voltou para o seu canto, do outro lado do porão. Mas teve dificuldade em adormecer. Os risos, os gritinhos e os suspiros que chegavam até ele tiravam-lhe o sono. Pela primeira vez se lembrou da terra, devia estar a começar a ter saudades.
Esta segunda metade da viagem decorria sem sobressaltos. Tanto o Fiel como os animais pareciam ter-se habituado à rotina do mar, e mesmo os animais mais fracos, com a paragem e com os tratamentos, davam sinais de estar a recuperar.
O tempo ia arrefecendo todos os dias um pouco, conforme iam andando para norte, e o Fiel cada vez com mais frequência, quando subia ao convés, trazia vestido o seu casaco. Olha lá, o gajo hoje vem vestido a rigor, comentava um marinheiro. Hoje trouxe o fraque, parece que vai à ópera. Ó Fiel, quando chegarmos, hei de levar-te assim vestido ao Cais do Sodré que vai ser um sucesso. Dizia outro, e riam-se os marinheiros e ria-se ele também, que não percebia o sarcasmo.
Uma manhã, há hora do café, quando entrou na cozinha tinha uma surpresa à sua espera. Isso é para ti, disse-lhe o cozinheiro apontando para um embrulho a um canto. Trouxe-te isso, vê lá se te serve. O Fiel acocorou-se curioso e, com muito cuidado, desembrulhou. Era uma trouxa de roupa. Primeiro umas calças, que segurou com os braços esticados à frente e olhou admirado, e mais uma camisola de lã, e ainda uma camisa e um par sapatos. Ué, mas então... e ia revirando as peças uma a uma, e às tantas, quando pega nos sapatos, coloca-os ao lado no chão, levanta-se e comparou. Foi aí que o Almeirim pela primeira vez reparou naquela desproporção. Quando olhou para aqueles pés, que nunca na vida tinham calçado um sapato, aquilo não eram pés, aquilo mais pareciam barbatanas. Eram uns pés larguíssimos, com umas solas curtidas por muitos anos e muitos quilómetros palmilhados. Epá, não vai ser fácil encontrar uns sapatos para ti, não tinha pensado nisso.