quinta-feira, dezembro 16, 2004

UM PERFUME DE ALFAZEMA

Já se distinguia ao longe a linha do horizonte, e a primeira claridade da manhã surgia lentamente descobrindo e colorindo o mundo todo à sua volta. Num velho trilho abandonado, ziguezagueando por entre pedras e mato, um homem caminha num passo cansado. Andar, andar sempre, acertar a respiração e o passo e não pensar em mais nada. Com esforço, resistindo ao frio que o atormentou nas últimas horas, só espera que nasça o dia para poder parar e descansar. Um pouco antes de nascer, já se adivinha o Sol, virá dali daquele lado. Ouve-se o cantar de um passarinho saudando o dia, e logo outro e outro de seguida o acompanham num alvoroço de asas e de cantos, ajudando a espalhar o dia pelos campos.
Os primeiros raios de sol já lhe aquecem a cara e lhe queimam os olhos. Abranda um pouco o passo e respira mais calmamente. O que o faz parar, enfim, é o chilrear dos passarinhos. Há quanto tempo os não ouvia? Já não se lembra. Está menos frio agora e procura um sítio onde sentar-se e descalçar as botas. Quer descansar as pernas e dormir. As últimas horas de caminho fê-las como um sonâmbulo - três passos inspira, três passos expira. O trilho que seguia, de ter sido em tempos muito usado, ainda lá estava, ainda se via, e foi isso que o ajudou durante a noite, evitando andar às voltas sem sentido. Afastou-se um pouco do caminho, arrancou umas braçadas de erva, improvisou uma cama, descalçou-se e deitou-se. Fez do saco que trazia o travesseiro, pôs o chapéu sobre os olhos, e pouco depois adormecia.
Deste homem, saberemos a origem quando ele dela nos quiser dar conta. Do seu destino, nem mesmo o narrador o sabe. Deixará que seja o próprio a decidi-lo.
A paisagem aqui é quase agreste, a vegetação escassa e rasteira permite vislumbrar o horizonte todo em volta. Alguns tufos de arvoredo dispersos aqui e além, e sobretudo muita pedra. Ao longe, para nascente, umas montanhas.

Parecia estranho, mas diria que voava. Depois de vencido o medo, podia deixar o solo e elevar-se no ar, não sentir mais o peso e voar. E agora lá do alto, toda aquela visão do mundo... Tudo o que via era novo e nada reconhecia que lhe pudesse dizer onde estava. Sozinho, só com a surpresa do voo, procurava lá em baixo um caminho, qualquer coisa que reconhecesse, que conseguisse identificar, quando de repente se viu a si próprio naquela madrugada no carreiro que seguia quando.... Uma súbita vertigem e logo a aflição da queda. Num segundo debate-se sem perceber o que lhe está a acontecer, estou a cair! estou a cair! Grita e agita-se quando de repente...
Acorda. Aflito e a transpirar, afasta o chapéu da cara, mas não consegue abrir logo os olhos devido à súbita claridade. Quanto tempo terá dormido? Nesse preciso momento, um passarinho acabava de pousar num arbusto ali muito perto dele, e olhava-o curioso. O ramo ainda abanava, e é isso que lhe prende a atenção enquanto vai entreabrindo os olhos, adaptando-os à luz. Ele e o pássaro olham-se com a mesma estranheza e a mesma curiosidade.
?Eu estava a voar quando acordei!? lembrava-se. Já tinha tido sonhos estranhos outras vezes, mas esquecia-se deles quase logo, e a maioria das vezes, ao acordar, não os conseguia relacionar com a realidade. Mas agora tinha ali por cima da cabeça aquele passarinho a olhar para ele, e a coincidência de se encontrarem ali naquele instante, ele vindo de um sonho em que voava, e um pássaro, talvez vindo dum voo em que sonhava...



Estaria a delirar? Adormecera exposto ao sol, e agora com certeza delirava. Arrastou-se um pouco, para abrigar a cabeça à sombra, fechou os olhos e tentou reconstituir o sonho. Mas do que se lembrava, era que o sonho tinha abruptamente terminado no preciso instante em que tocou a realidade. Como uma bola de sabão que se desfaz quando a tocamos. Dois mundos que não podiam existir em simultâneo, pensou. Seriam os pontos em que se tocam, passagens para outras dimensões? Tentou por algum tempo ainda manter-se naquela fronteira entre o sonho e a vigília mas, sentia a boca seca e na barriga aquele aperto da fome que não lhe dava sossego. Tinha caminhado toda a noite e todo o dia anterior, e só tinha parado para beber água quando atravessou um ribeiro, já muito lá para trás. Aí, tinha aproveitado para descansar um pouco e encher uma garrafa que trazia no saco. Virou-se à procura da garrafa, e olhou para cima. O pássaro ainda lá estava, no mesmo sítio, agora entretido a coçar as penas com o bico, e assim que o viu mexer-se, ficou de novo atento aos seus movimentos. Ele desrolhou a garrafa e, antes de leva-la à boca, encheu primeiro a tampinha, à laia de copo, e esticou o braço colocando o pequeno bebedouro ao seu lado, o mais afastado que pôde, a convidar o passarinho a beber também. E bebeu a água que restava na garrafa. O passarinho não se mexia no seu poleiro e tinha o olhar fixo naquele minúsculo espelho de água que brilhava lá em baixo. Seria uma armadilha para o atrair ao pé do homem? Não, os animais não pensam assim, isso é uma característica humana. Virou-se de lado e tapou a cara com o chapéu, deixando por baixo uma pequena nesga por onde podia ver a tampinha à sua frente à distancia de um braço estendido.

Fruto de uma longuíssima experiência acumulada, a desconfiança dos pássaros possibilitou-lhes uma existência tão antiga como a dos dinossauros. O facto de voarem
permitiu-lhes até sobreviverem ao Dilúvio. Se pudesse escolher um outro animal para reencarnar, seria um pássaro, pensou. Não iria fazer mal àquele. Tinha feito apenas uma tentativa de aproximação amigável, uma pequena oferta em troca de uns momentos de companhia. Será que o animal entendia? Bastava que ele vencesse o medo e descesse até ali para matar a sede, ficaria contente. Prometia deixar-se ficar completamente imóvel, para não o assustar, e mostrar-lhe que podia confiar num ser humano. Pelo menos naquele ser humano.

Abriu os olhos e percebeu que tinha novamente adormecido. Por uns instantes talvez... E reparou com espanto que a água tinha desaparecido, o pássaro devia ter pousado ali enquanto ele dormia, e bebeu-a sem que ele desse por isso. Mas o que era verdadeiramente surpreendente, é que mesmo ao lado da tampinha da garrafa, estava um pequenino fruto vermelho alaranjado, pouco maior que uma cereja. Ergueu-se e olhou em volta, a ver se havia sinais do pássaro, mas não, nem sinais. Pegou no fruto e examinou-o com cuidado, tinha apenas uma pequeno golpe que deve ter sido feito com o bico, ao traze-lo. Era um fruto muito bonito, com uma pele sarapintada de pequenas grainhas brancas. Dir-se-ia um morango, não fosse ser tão redondinho. Hesitou em mete-lo à boca. Cheirou-o primeiro e depois tocou com a ponta da língua no sítio que tinha sido ferido pelo pássaro e achou que era doce, devia ser comestível, portanto. Já não comia nada há bastante tempo, e isso avivava-lhe os sentidos. Era realmente muito doce. Seria venenoso? A natureza é sábia, e pôs nas coisas venenosas sabores normalmente pouco convidativos. Com este raciocínio venceu a hesitação, e trincou-o. Uma metade primeiro, que saboreou lentamente, enquanto observava a outra metade com minúcia, entre dois dedos, quase em frente ao nariz. Tinha umas pequenas grainhas e era delicioso. Que fruto seria aquele? Meteu o resto na boca e levantou-se, saboreando a novidade e tentando localizar o pássaro. Em toda a volta quase não havia árvores, a vegetação era pouco mais que rasteira, unicamente uns pequenos arbustos aqui e além, no máximo da altura de um homem. Aquilo só podia ser fruto de um daqueles arbustos ali das redondezas. Resolveu retomar o caminho. Calçou as botas, amarrou o casaco pelas mangas em volta da cintura, pegou no saco e retomou o velho trilho, observando os arbustos na esperança de encontrar mais frutos.
Manteve aquele sabor na boca durante algum tempo e ia pensando no pássaro. Por onde andaria ele agora? Será que os pássaros têm memória? Se o visse será que o reconheceria? Os pássaros parecem todos iguais, dentro de cada espécie, claro. E aquele era o quê? Um pardal, talvez. Ou seria um rouxinol? Também podia ser... não, andorinha não era de certeza. Cucos, rolas, e foi enumerando mentalmente todos os tipos de aves de que se lembrava. Pardais, pombos, perdizes, codornizes... Como seria que as aves entre elas se distinguiam? como é que um pardal sabe que é um pardal? Lembrou-se que os cucos deixam os seus ovos a chocar nos ninhos de outras aves. Há coisas estranhas na natureza, até havia um filme sobre isso. Um filme...é verdade! E nisto parou. Há quanto tempo foi isso? E aonde foi? Surgiam-lhe imagens desconexas que ele não conseguia organizar e dar sentido. Uma tontura e era a guerra, as mortes e o sangue, o hospital, tudo branco, as batas brancas...e ele amarrado à cama. Uma aflição! Deu por si ali parado sem saber o que fazia, e o que fazer. Respirou fundo, uma, duas, três vezes. Já antes se tinha sentido assim, e disse para si próprio: ? Nada de pânico, nada de pânico, continua o teu caminho! E lentamente foi retomando a marcha, tentando fixar-se na respiração, sincronizando-a com as passadas. Assim era mais fácil. Andar, andar e respirar.
O gosto que lhe ficara na boca lembrou-o que tinha de se alimentar. Começava a sentir-se fraco, não iria aguentar naquele estado mais uma noite de marcha. Aquele trilho iria dar a algum lado com certeza. Mais adiante, onde o terreno subia ligeiramente à direita, havia um pequeno arvoredo. Decidiu-se e resolveu meter por entre o mato, subir naquela direcção. Foi-se aproximando e, observando os arbustos, reparou que num deles, dissimulado entre os outros, havia de facto uns frutosinhos que percebeu quase logo serem iguais ao que o pássaro lhe tinha levado. O arbusto não era grande, pouco mais alto que ele, e estava carregadinho. Arrancou um e meteu-o na boca, saboreando com gosto, calmamente. Depois comeu outro, e mais outro, já com alguma sofreguidão. Os mais avermelhados eram os mais maduros e mais doces. Não só matavam a fome, como os mais sumarentos lhe aliviavam também a sede. Ás tantas, com a boca tão atafulhada que já lhe escorria um suco pegajoso pelo queixo e pelo pescoço, resolveu parar aquela orgia, percebeu que em breve se iria fartar. Havia ainda tantos frutos, porquê aquela sofreguidão? Podia até encher os bolsos e continuar o caminho com uma reserva para o resto da viagem. E foi isso que fez, encheu os bolsos do casaco e voltou ao trilho que tinha abandonado mais a baixo. Sempre podia ir metendo a mão ao bolso quando quisesse enquanto caminhava, se lhe apetecesse comer mais. Mas de momento estava cheio, ou melhor, estava quase enjoado.
De regresso ao caminho, ainda mal tinha retomado o ritmo da marcha e já começava a sentir o estômago às voltas, agoniado. Não devia ter comido daquela maneira. Mas pensou que a qualquer momento podia meter os dedos à boca e vomitar. O pior eram as tonturas que começava a sentir, e que não queria acreditar que fossem provocadas pela fruta. Seriam os frutos venenosos? Ter-se-ia envenenado estupidamente a si próprio? Cada vez se sentia mais tonto e com a vista cada vez mais embaciada. Tentou ainda alguns passos, mas já não conseguiu. Deixou-se cair de joelhos, e vomitou copiosamente.
Um nojo, toda aquela polpa adocicada ali regurgitada à sua frente, e ele naquela posição sem glória. Parecia-lhe que vomitava quilos de fruta.
- Cabrão do pássaro, hein! Pensava alto. E ao tentar levantar-se via tudo a andar à roda. Fez um esforço para se aguentar em pé, mas em vão. Tropeçou nas próprias pernas e caiu. Deixou-se estar assim por uns momentos, deitado, tentando perceber o que se estava a passar. Seria o efeito do veneno?
Finalmente percebeu que estava bêbado. Não era uma sensação nova, mas sempre associara a bebedeira ao álcool e à bebida, e agora só tinha comido fruta. Coisa estranha aquela! Tentava ter alguma lucidez no raciocínio, mas não era fácil.
- Vou ficar aqui sossegadinho um bocadinho, à espera que isto passe. Não é a primeira vez que apanhas uma buzana, pá. Isto passa... e também já vomitaste, o que alivia bastante. Deixa-te estar, que estás bem assim. Falava alto como se tivesse companhia. E o sacana do pássaro, hein? filho da puta, um gajo ali cheio de consideração com os bichos, se calhar o bichinho tem sede, e tal... e o manhoso fodeu-me! E depois de uma pausa, continua. Mas olha que até tem graça. O sonso! Veio de mansinho, apanha-me a dormir, e deve ter percebido que um gajo estava a precisar de alimento e pimba, com a treta de me adoçar a boca...
E assim continuou deitado, de barriga para o ar olhando o céu, enquanto perorava:
- Mas olha que o sacana foi subtil. Se fosse um passaroco malandro ou mal agradecido podia-me ter cagado em cima, por exemplo. Ou pior ainda, vir-me bicar um olho, foda-se! Mas este sacana devia ter sentido de humor. Será que também há humor nos animais? Se eles brincam... E com a treta de retribuir a gentileza da água, deve ter pensado, vou dar-lhe uma coisa doce, o gajo vai gostar, vai à procura de mais e eu vou ficar aqui a ver o gajo rebentar. Bem visto... Se calhar até está para aí escondido a ver-me nesta triste figura, o cabrão.
E com a bebedeira, delirava. Virou-se de lado e tentou descansar, agora já com alguma simpatia pelo passarinho, e até com admiração pelo elaborado raciocínio que descobria no animal.
- Mas que raio de merda é que eu comi? Foi a última coisa que conseguiu dizer para si próprio uns momentos antes de adormecer novamente.

Agora voava no meio de um enorme bando de pardais do campo, e reparava que havia uns quantos que, à parte, se destacavam formando verdadeiras esquadrilhas que faziam as acrobacias mais incríveis que se podia imaginar. E eram vários os grupos de esquadrilhas que se desafiavam, fazendo loopings e descidas vertiginosas para ver quem eram os melhores. Era um mundo fascinante de desafio permanente e de liberdade.
Ele não se destacava no bando. Era um grupo muito grande que voava sobre as cearas, onde faziam grandes razias. Os outros, os kamikazes, como ele lhes chamava, voam à parte, mais alto e em bandos mais pequenos. Faziam voos muito velozes, com acrobacias fantásticas em volta dos campos, distraindo eventuais predadores. E em caso de perigo, avisavam rapidamente os companheiros que comiam calmamente lá em baixo. Eram jovens machos, normalmente. As fêmeas e os mais velhos podiam assim comer tranquilamente os seus grãosinhos de trigo ou do que fosse, e carregarem as ervas para os ninhos.
Mas os kamikazes fascinavam-no. Eram velozes e destemidos e, à parte o exercício do voo, em que eram exímios, não ligavam a mais nada. A não ser acasalar. Depois das suas enumeras façanhas, não lhes era difícil cortejar e seduzir as fêmeas.
Nunca tinha feito parte de nenhuma daquelas esquadrilhas. Por várias vezes tentou isoladamente efectuar loopings e voltas rápidas, e algumas outras manobras que já tinha observado e que lhe pareciam impossíveis de realizar. Mas corriam-se imensos riscos em voos isolados, e o maior de todos era o ficar-se muito vulnerável a qualquer predador. Ele sabia isso. A grande protecção era a presença do bando. Todos protegem todos. O bando era praticamente invulnerável. É certo que por vezes desapareciam alguns, mas o bando permanecia.
A ele fascinavam-no as proezas do voo, e pertencer a um daqueles pequenos grupos era o seu maior sonho. Ser capaz de fazer o mesmo e ser respeitado pela sua audácia. Não desistia da ideia de o conseguir um dia.
Uma manhã em que ainda estavam quase todos às voltas nos ninhos, resolveu sair sozinho e seguiu à distância um pequeno grupo de Kamikazes que costumava treinar muito cedo, aproveitando o fresco da manhã. Poisou num ramo bem alto e ficou a observar de longe. A formação da esquadrilha era perfeita. À frente vai um líder que dirige os movimentos de todos os outros e tudo o que ele fizer os outros repetem instantaneamente, não há nenhum lapso de tempo, nem uma fracção de segundo sequer. Volta à direita, agora à esquerda e para cima, muda de velocidade, desce, acelera, tudo é feito em bloco e ao mesmo tempo, como se de um só corpo se tratasse. Reparou que a posição de líder ia alternando entre todos, com uma sequência que lhe escapava. Qualquer um podia tomar a dianteira e, a partir daí, tudo dependia da capacidade inventiva do líder e da sua experiência para dirigir o grupo até aos limites da aerodinâmica. Essa alternância tem a vantagem de repartir o maior esforço por todos. Os que vão nas linhas de trás voam com muito menos esforço porque não têm que enfrentar a mesma resistência do ar. Por vezes, com muito treino, é possível voar quase sem bater as asas, aproveitando o efeito de sucção dos da frente. Era lindo de ver!
Tão absorvido estava a ver aqueles exercícios que não reparou num outro mais velho que também observava o espectáculo num ramo ali perto.
- É bonito de ver não é? só depois do outro falar é que reparou que ele ali estava. Olhou-o e concordou com a cabeça.
- Mas isto pode acabar um dia, sabes? Insistiu o mais velho. Pode ser que um dia não seja mais possível voar assim.
- Porque é que diz isso?
- Achas que só a comer grãosinhos de trigo se consegue fazer aquilo que eles fazem?
- Mas é uma questão de alimentação? Será assim um esforço tão grande?
- Não é de esforço físico que eu estou a falar, a maioria das aves só come grãos e não é por isso que deixa de voar. É de um outro estado de consciência que eu estou a falar, de outra percepção da realidade que lhes permite aquela comunicação entre eles e aquela eficiência.
- Não estou a perceber...
- Tu não és daqui pois não? e com um ligeiro bater de asas veio pousar no mesmo ramo, quase ao seu lado.
- Não sei de onde é que eu sou, só estou fascinado com aquelas acrobacias, era uma coisa que gostava de ser capaz de fazer. Porque voar sozinho e ir para onde eu quero não tem novidade nenhuma para mim.
.....
- Tem de se passar por várias provas, antes de se ser capaz de fazer aquilo.
- E que provas são essas? Perguntou curioso.
- Para começar, tens de provar que és capaz de arriscar a tua própria vida sozinho em benefício do grupo, e com a certeza de que não terás ajuda de ninguém. Só poderás contar contigo próprio, com a tua coragem e a tua inteligência.
- E se eu aceitar, o que é que tenho que fazer?
- Aos principiantes, a primeira tarefa que lhes é confiada é irem procurar alimento para aqueles que estás ali a ver. Sem essa alimentação eles não têm as capacidades que lhes permitem aquelas proezas.
- E que alimento é esse? É muito complicado, isso?
- Depende do engenho de cada um. Para uns será mais fácil, para outros mais difícil. Alguns pagam com a própria vida.
E deu um pequeno impulso, fazendo balouçar o ramo, bateu as asas e voou.
Não podia perder aquela oportunidade, pensou, precisava de saber mais. O seu sonho parecia envolto num segredo e dificilmente voltaria a estar tão perto, caso o deixasse ir-se embora. Resolveu ir atrás. Seguiu-o e reparou que o outro, provavelmente por ser mais velho e para não fazer grande esforço, aproveitava na perfeição as correntes de ar e quase não tinha que bater as asas para voar. A mais pequena brisa ascendente era por ele percebida antecipadamente. Não voava muito depressa, mas o seu voo sereno parecia um bailado. Viu que estava a ser seguido mas não alterou em nada o seu caminho, deixou que o jovem se fosse aproximando e reparou que, aos poucos, ele lhe ia imitando os movimentos. Ao fim de algum tempo, depois de já estarem a voar praticamente lado a lado, sempre a subir, aproveitando o vento quente, resolve quebrar o silêncio.
- Não há perigo em vir aqui para tão alto?
- Perigo há sempre, sabes que viver é perigoso. Respondeu o outro. Queria mostrar-te a paisagem daqui de cima. E subiram mais um pouco.
A vista dali era soberba! A Terra agora parecia um disco redondo lá em baixo, e em volta, todo o horizonte azul.
- Todos esses campos que vês, sempre nos deram de comer com fartura, nunca houve problemas de comida, podíamos ir rodando constantemente, variando a alimentação, e ninguém se importava com isso. Depois, parece que alguém descobriu a maneira de fazer fogo, mais tarde pesticidas venenos, e desde aí tudo tem vindo a mudar, é uma verdadeira praga. Às armadilhas e aos espantalhos até nos habituámos, foram muitos anos de convivência, quase que já achávamos graça. Ultimamente ouve-se falar de cereais trangénicos. Será que eles conhecem todas as consequências? As fêmeas que se alimentarem com essas plantas, podem até ficar gordinhas, mas em breve deixarão de poder ter filhos. Dentro de algumas gerações, se quiseres encontrar alguém como tu, terás de ir a um jardim zoológico, ou a alguma loja de pássaros para ver os teus irmãos fechados, muitas vezes com as asas cortadas, enfiados naquelas gaiolas horríveis que eles acham muito bonitas e decorativas, a comer alpista de manhã à noite e a gritar por socorro. E eles acham que estão a cantar! O que os vale é que morrem rapidamente. O futuro pode vir a ser sombrio...
- E o tal alimento especial de que há bocado falava?
- Já lá vamos. E continuou. Com as coisas que lá embaixo teimam em fazer, a maioria dos frutos silvestres que sempre existiram, estão aos poucos a desaparecer. Arrancam-se plantas sem sequer saber primeiro que plantas são, e para que servem. Arrasam tudo, chegam a cobrir de cimento sítios onde antes havia plantas que lhes podiam ter aliviado o reumatismo ou evitado o cancro. A fruta que eles comem é cultivada em série, campos a perder de vista, tudo igual, tudo com o mesmo sabor. Até se gabam que não têm bicho, e que não estão bicadas por nós. Pois pudera! E dos frutos silvestres que estão a desaparecer, há alguns que devido às suas propriedades raras correm riscos maiores, por ignorância ou por cobiça, já quase não se encontram nos seus lugares de origem. Vês aquelas pedras ali, junto àqueles montes lá ao fundo? Ali ainda há medronhos. O sítio é bastante difícil de encontrar para quem vai por terra, e é isso que tem ajudado à sua protecção. Só lá vai gente muito raramente, passam-se anos sem aparecer ninguém por ali.
- Então e isso é bom? perguntou o outro, cada vez mais interessado.
- Depende...
- Depende... Depende de quê? Não estou a perceber.
- Depende se esses raros caminhantes encontram medronhos ou não, e da maneira depois como os comem.
Tinham começado a descer. Havia o perigo das águias, e desciam o mais silenciosamente possível, evitando grandes movimentos que pudessem chamar a atenção sobre eles, em direcção ao tal sítio das pedras. A descida foi rápida. Depois de ter feito sinal para que o outro fosse olhando para trás também, porque as águias são muito manhosas e muitas vezes atacam de surpresa vindas de cima, o mais velho seguia à frente cortando o ar como uma flecha. Era admirável a forma como colocava as asas e a atitude do corpo para reduzir ao mínimo o atrito. Acabaram por pousar suavemente no cimo de um pequeno arbusto, depois de uma curta volta de reconhecimento. Havia no ar um perfume doce que ele não percebeu imediatamente de onde vinha, nem o que era. Ainda estava a refazer-se da rápida descida atrás do mestre ( era assim que ele começava a ver o mais velho), e a tentar identificar aquele aroma desconhecido que o envolvia.
- São medronhos. Disse o mais velho enquanto observava a paisagem toda em volta.
Só então reparou que por baixo deles, dissimulados pela folhagem, havia imensos frutos que devido ao sítio em que tinham pousado, não eram visíveis imediatamente. Deu um pequeno salto para um outro ramo mais abaixo, e aí sim, ficou mesmo em frente a um dos frutos que quase podia tocar com o bico. Sentiu-se como que hipnotizado, pela cor e pelo aroma que libertava (àquela distancia quase entontecia), e pelo tamanho também. Eram umas bolas enormes, maiores que a sua cabeça cabeça.
- Posso provar? Perguntou guloso.
- Não te aconselho. Esta fruta tem propriedades mágicas, mas não pode ser comida assim como tu queres, é altamente tóxica. Quem não sabe, e se deixar seduzir e levar pelos sentidos, não vai esperar muito tempo para se arrepender. Isto, consumido assim, pode matar. E depois de uma pausa, continuou. É raro passar gente por aqui, é preciso ter paciência... Bem, agora que já ficaste a saber o que é, vamos embora que estamos longe e já se faz tarde. E bateu as asas para iniciar o regresso.
Ele ainda hesitou, enfeitiçado que estava pela descoberta e pela terrível tentação, mas acabou por regressar também atrás do outro.
Voava com a estranha impressão que ainda voltaria ali um dia. Seguia o mestre, batendo as asas em silêncio, mas havia uma pergunta que lhe atravessava o pensamento. Se os frutos eram tóxicos, e se podiam matar quem os comesse, para que serviriam então? Porque seriam assim tão fascinantes se não poderiam ser tocados? Resolveu esperar. Já tinha percebido que o seu mestre gostava daqueles silêncios e não quis mostrar-se demasiado curioso. Quando ele achasse que era oportuno dizer alguma coisa, di-la-ia com certeza. Entretanto o outro, parecendo que lhe lia os pensamentos, fez uma viragem em direcção a um pequeno ribeiro que passava ali perto.
- Vamos descansar um pouco ali, e refrescar-nos.
Pousaram tranquilamente juntos, sobre uma pedra mesmo à beirinha da água. Depois de beberem e de sacudirem as penas, voltaram a falar.
- Ficaste curioso com os medronhos, não foi? Sabes que alguns frutos e plantas da natureza, têm poderes estranhos que é preciso perceber e saber aproveitar, ou rejeitar. Mas todos acabam sempre por ter alguma razão de ser. Uns são muito bons, e outros podem ser muito maus. Se seguir-mos às cegas os nossos apetites, sem pensar e sem aproveitar o conhecimento que outros antes de nós adquiriram, podemos dar-nos mal. No caso dos medronhos, há animais que os podem comer e não lhes faz mal, se não abusarem. Têm os estômagos diferentes dos nossos e digerem-nos de forma diferente. Mas se os comerem em grande quantidade, acabam por rejeitá-los. Acontece muito a quem não sabe, acabam por vomitar aquilo que não foi absorvido. Fez uma pequena pausa, e depois acrescentou:
- E aí entramos nós...
O outro, que seguia muito atento a explicação, a tentar perceber, não percebeu.
- Entramos nós como?
- Entramos nós, porque assim já podemos comer os medronhos. Falava tranquilamente, como se da coisa mais natural do mundo se tratasse. Os frutos rejeitados dessa forma, sofreram, por acção daquele estômago, uma transformação que lhes eliminou as toxinas que nos fazem mal a nós, o que permite que já os possamos comer sem perigo. Estou a ser claro?
Ele estava sem palavras, nem conseguia olhá-lo de frente. Tentava controlar a sensação de agonia que lhe tinha surgido subitamente. Ele devia estar a brincar! Comer a fruta que tinha sido acabada de vomitar?
- Sim, claro! Foi a única coisa que conseguiu dizer, continuando a olhar para o outro lado, enojado. E que tal são os medronhos depois de serem assim... rejeitados? Ainda conseguiu perguntar, disfarçando o ar de nojo e tentando fazer crer que achava tudo aquilo normal.
- É um verdadeiro manjar dos príncipes! Disse o outro. É altamente energético, e desperta capacidades extra-sensoriais fora do comum. São essas qualidades que tornam alguns de nós capazes de executar aquelas proezas que tens visto. Claro que perdem parte do açúcar, mas continuam a ser saborosos.
Ele não queria acreditar no que ouvia! O mestre afinal estava a revelar-se o grande mestre do embuste. Devia ter logo percebido quando o outro lhe perguntou se não era de cá... Deve ter começado logo aí a preparar a história. E esteve quase para se virar e perguntar:
- Olhe lá, mestre. Os tais ditos sobrenaturais não serão antes gambuzinos disfarçados de pardal? Mas resolveu que não, já agora iria ouvir o resto da história até ao fim. Aquilo só podia ser uma grande partida.
- Pelo que estou a perceber, para se ser iniciado, a primeira tarefa será então ir procurar medronhos acabados de ser vomitados. É isso?
O mestre abanou a cabeça, afirmativo.
- E como deves saber, nestas regiões já não há chipamzés, animais muito pacíficos e grandes apreciadores de medronhos. Eram muito nossos amigos. Mas há muito tempo que foram para outras paragens, só cá ficaram uns outros macacos muito menos espertos e que entretanto mudaram de nome, agora chamam-se humanos. Mas não mudaram muito os seus comportamentos. Andam todos tapados, muitas vezes nem se consegue distinguir os machos das fêmeas, e são muito manhosos. Também são grandes apreciadores de medronhos, e quando não os comem, dão-lhes um tratamento que os transforma numa bebida que eles apreciam muito, chegam mesmo a ficar de cabeça perdida. E, com um ar meio resignado, concluiu. São estes agora o que nos resta para tratar os nossos medronhos.
Era preciso uma grande lata! E continuava com aquela história, como se ele não tivesse já percebido que aquilo era tudo uma grande aldrabice.
- Mas, segundo ouvi dizer, arriscou o jovem pardal, esses tais ditos humanos, quando apanham algum de nós, enfiam-no logo numa gaiola, não é? Porque será, hein?
Tinha resolvido deixar-se embarcar a ver até onde é que aquilo ia.
- Não sei explicar. Disse o outro muito sério. Talvez porque, para além de comerem outros animais, o sofrimento que lhes infligem os alimente também... ou lhes sirva para qualquer outra coisa, não sei. Não tem explicação.
E ficaram por alguns momentos pensativos. Mas o assunto não estava esgotado.
- Eles até constróem umas gaiolas onde se prendem também uns aos outros! ...são um perigo, esses tais humanos!
- Não deve ser então tarefa fácil andar à procura por esses campos de alguém que tenha comido medronhos a mais, e depois ficar ali à espera que os vomite... Com o amor que eles nos têm, se nos aproximamos muito estamos fritos.
- Literalmente. É mesmo um dos petiscos que eles mais apreciam, passarinhos fritos.
Aí, o outro teve um arrepio.
- Qual é então a melhor maneira de se conseguirem esses tais ?medronhos com tratamento?, não haverá outra forma? Perguntou com o ar mais sério que conseguiu.
- Há mais seres que gostam deste fruto, menos falsos que os humanos e dos quais nos podemos aproximar facilmente. Mas esses, de um modo geral são mais sensatos e, quando percebem que algo lhes vai fazer mal, sabem parar a tempo. Eu avisei-te que é preciso arriscar a vida. Mas cada um é livre de usar os processos que achar mais seguros e mais eficientes. O resultado só depende do teu engenho e da tua habilidade. Desejo-te boa sorte!
E bateu as asas e voou. Foi-se embora sem dizer mais nada.
A conversa terminara sem despedidas, unicamente com aquele ?boa sorte? e, ala. Teria o outro percebido que ele já não estava a acreditar em nada? Mas como? Se ele não tinha dito nada que fizesse supor isso...até continuou a responder normalmente, apesar de ter achado tudo aquilo um nojo.
Deixou-se estar entretido junto ao ribeiro onde havia umas bagasinhas muito gostosas, que já não comia há muito tempo. E enquanto ia petiscando e saltitando, lembrou-se dos tais ditos poderes de que o outro falava, conseguidos pelo efeito de qualquer coisa que se comeu. Seria isso? Já antes, por várias vezes lhe parecera que ele lhe adivinhava os pensamentos, mas sempre deixou passar como coincidências. O que é certo, é que a conversa do outro pareceu esfriar a partir de um certo ponto, e acabou por terminar daquela forma abrupta. Era estranho... Se de facto era possível o outro seguir os seus pensamentos, claro que percebeu que já não estava a acreditar em nada, e portanto, para quê gastar mais conversa e perder mais tempo? Tinha lógica. Seria isso? Já não sabia no que acreditar, estava confuso, e preocupado também. Agora achava que devia ter falado e dito imediatamente que já não ia naquela história, que não estava a acreditar nele. Fingir que seguia tudo com muita atenção, e fazer até algumas observações, foi uma falsidade que se calhar o outro percebeu. Se isso era verdade, tinha razão para ficar ofendido. Não sabia o que pensar. É verdade que tinha ficado enojado com a novidade daqueles procedimentos, mas em vez de tentar esconder isso, devia ter falado logo em vez de pensar que o outro o estava a querer enganar. Achou que estava a adivinhar o pensamento do outro quando afinal, parece que se tinha passado o contrário. Tinha julgado na cabeça do outro um pensamento que afinal era seu. Isto era tipicamente um raciocínio human...
Sente de repente uma espécie de choque eléctrico que o sacode todo e acorda num sobressalto, sem saber onde, nem desde quando ali está.
E o ribeiro? E as pedras?
Tenta localizar-se e recupera lentamente. Pelo altura do sol percebe que o dia avançou bastante, e ouve-se ao longe o piar de um passarinho a pontuar o silêncio. Sente a cabeça estalar, o corpo dorido e aquele sabor agora azedo na boca. Tudo o que podia desanimar um homem. Mas tem outro sobressalto que o faz definitivamente acordar. Não, não fora um pesadelo que tivera, queria encontrar um nome e não encontrava. Tentava lembrar-se do sonho em que de novo voava, e parecia-lhe uma história incrível, que transposta para aquela realidade que agora o envolvia, se esfumava como uma nuvem. Ainda faz um esforço mas, em vão. Resolve deixar para depois, fica-lhe apenas a sensação que tinha sido uma coisa mágica. Talvez viesse a lembrar-se mais tarde, agora não era capaz.
Soergueu-se entretanto, ficando sentado com as pernas estendidas a ganhar coragem. Olhava para as botas à sua frente e, um pouco mais abaixo, lá estava no chão aquela mancha rosada de restos de fruta que, para além da repulsa, também lhe provocava um certo embaraço. Vergonha mesmo. Aquela imagem e sobretudo aquela recordação fizeram-no levantar-se como pôde e tentar retomar o caminho rapidamente. A tarde já ia avançada, e se não encontrasse nenhum abrigo até ao anoitecer, teria pela frente mais uma longa caminhada nocturna, para a qual não se sentia com ânimo nenhum. Pegou no saco que tinha ficado abandonado no chão e pô-lo ao ombro, retomando a marcha.
Trazia os bolsos cheios de fruta e pensou deitar aquilo tudo fora, enojado, mas não o fez. Olhou uma última vez para trás, para o sítio onde tinha estado, e pareceu-lhe ver por um instante um passaroco a esvoaçar em volta. Mas não tinha a certeza, foi um coisa fugidia, nem deu para ver bem, podia perfeitamente ser impressão sua, ou alguma erva que abanava com o vento.
Levou algum tempo a recuperar o ritmo da marcha, e à parte um resto da má disposição no estômago que passaria com o tempo, estava quase esquecido aquele episódio. Não queria pensar mais nisso, podia ser que mais tarde, se se lembrasse da história, ainda viesse a achar-lhe graça. Ou então que era uma coisa mais séria, mete aqui o narrador o bedelho, uma vez sem exemplo.

A urgência da notícia queimava-o, e acelerava-lhe o voo.
Sobre aqueles campos isolados, um pardal solitário procura o caminho de regresso ao sítio onde naquela manhã tinha abandonado o bando para se lançar finalmente sozinho na grande aventura da sua vida.
Ele sabia onde encontrar os medronhos. Desde aquela primeira vez que sabia que lá voltaria. O fascínio do perigo, o desafio, o segredo, tudo isso o trazia inquieto há vários dias. E agora aquela urgência de partilha, e o estado de exaltação provocado pelos pequenos pedaços que se atreveu a debicar e que o faziam sentir-se o dono do mundo e tudo entender numa visão cósmica até então desconhecida. Seria este o prémio da vitória?
Quando iniciou o regresso, encontrar o bando pareceu-lhe mais fácil do que lhe parece agora. Será que foi nesta direcção que veio? Entretanto perdera a noção do tempo. A descoberta de novas sensações, o voo, os sons do vento, o domínio do corpo e das asas, tudo isso era novo e fascinante, mas quando se apercebeu, pareceu-lhe que o tempo tinha parado. Há uns segundos ou há muito tempo? Não sabia dizer. Só pensou nisso quando sentiu os primeiros sinais de cansaço, e no horizonte não se avistavam ainda sinais dos companheiros. Perder-se seria fatal. Tenta voar mais calmamente, prestar melhor atenção ao mundo à sua volta e revê com detalhe todo aquele dia, que foi intenso de experiências e de esforço. Desde a madrugada, quando avistou o homem solitário caminhando, o ter-lhe seguido os passos, a espera enquanto o via dormir, e a intrigante percepção dos seus sonhos agitados. E depois subitamente aquele rasgo, que não percebeu de onde veio. Aquele pedacinho de água tão reconfortante como inesperado ali tão perto dele! E quem poderá dizer se foi ele que empurrou as circunstâncias, ou se foram estas que o levaram a agir? Os medronhos estavam só à distancia de um pulinho, e quando se aventura a beberricar a água, tão perigosamente perto de um ser humano como nunca tinha estado, já levava no bico o fruto da tentação. Bebeu a água em silêncio, surpreendido ele próprio com o seu gesto, e afastou-se rapidamente num estado de grande excitação. E agora?
Lembrava-se de o mestre lhe ter dito que tinha de vencer o medo e usar a inteligência. Vencer o medo, talvez tenha sido um pouco irreflectido. E quanto ao uso da inteligência, o que era isso? Agira um pouco como um robot comandado por um outro dentro dele. Ou seria fora dele? Foi esvoaçando ali em volta, espiando o homem e pressentindo no caminho os seus desejos. Quando este finalmente encontra o medronheiro e mergulha naquela sofreguidão, ele hesita entre regressar imediatamente a avisar os outros ou esperar para ver o resultado. Tinha conseguido! Tinha vencido uma primeira etapa, o primeiro grande teste, e resolveu esperar e ficar para ver...

As primeiras a chegar foram as formigas, que não perdiam tempo, e já se afadigavam em ordeiras filas, num vai vem incessante, carregando pequenos pedacinhos que arrastavam para as profundezas da terra. Já cirandavam também embebedados pelo cheiro, alguns insectos procurando um poiso de onde pudessem regalar-se. Ele pousou a alguma distancia e foi-se aproximando em pequenos saltinhos, enquanto observava aquela festança que apenas começava. Quando resolve debicar naquela pasta, finalmente vencida a relutância inicial, não consegue desfrutar inteiramente. Sente-se só e repara que as formigas, todas e cada uma delas, são um organismo uno, e lembra-se do que o outro lhe dissera, qualquer coisa sobre partilha, e em benefício do grupo. Pensa neles e sente que, nesse instante, eles também estarão a pensar nele. Há qualquer coisa estranha ali que o faz decidir regressar rapidamente. Mas já não é o mesmo que regressa. Nota isso logo ao elevar-se do chão, bastou um pequeno impulso e parece não ter peso, sustenta-se no ar com uma sensação nova, tem os sentidos tão alterados que os mais pequenos detalhes da natureza à volta o surpreendem. A ponto de ver o homem, que se encontra novamente caído no chão, e pensar que consegue voar-lhe nos sonhos. Mas agora só quer voltar rapidamente e avisar os outros. Como é possível guardar um segredo destes sozinho? O que irão pensar dele se o não partilhar?

O sol vai baixando lentamente lá para trás, e sempre na mesma cadência, o homem já leva várias horas de caminho. Tem o olhar preso na sombra que se alonga lentamente à sua frente. Tem piada! Vou andando e parece que vou crescendo... Vai pensando alto enquanto segue a sua sombra nos relevos do terreno. E se eu saltasse e de repente ela fugisse? A sombra só não foge porque a trago presa aos pés. Sou eu que a prendo, ora com um, ora com outro, ora com os dois ao mesmo tempo. Tenta um salto mas desiste, está cansado. Mas se eu voasse ela fugia, se calhar. Seguir-me-ia de longe como um cão que segue o dono, e eu lá de cima a vê-la pequenina cá embaixo, a minha sombra...olha ela ali! E conforme vai falando, delirante, vão-lhe surgindo imagens do seu sonho, enquanto voa. E ouve aquele passarinho que falava e que dizia, vais correr riscos e só te tens a ti, cuidado com os humanos, são manhosos. E nisto tropeça numa pedra, e cai desamparado. Fica estendido no chão, aturdido. Até que, lentamente, vai recuperando e se levanta.
- Ainda te matas, pá! Fala alto para si próprio, a querer espantar sonho que o alucina. Olha pró caminho e acorda, porra, estão ali aqueles montes, estás a ver? É para ali que tu tens que ir, só mais um esforço, vá lá, não te deixes ir abaixo.
Avança agora em direcção aos montes, e o terreno vai subindo lentamente. Há qualquer coisa que o impele, talvez a presença do mar que pressente pelo cheiro no ar. Para sul, há uma mancha verde de arvoredo mais denso que parece escorrer encosta abaixo. Deve haver ali água, talvez uma nascente. Precisa encontrar água rapidamente, já lhe resta muito pouca da que trouxe. Em breve irá parar e procurar também no saco o que lhe resta para comer.
O trilho sobe em direcção ao arvoredo. A luz do fim do dia vai caindo, as sombras vão-se esvaindo compridas e ele vira-se uma última vez para ver o sol que se esconde nesse instante. Daqui a nada é noite... E quando volta a olhar o arvoredo em frente, a surpresa não podia ser maior. Muito ténue, um fiozinho de fumo surge subindo por entre as árvores lá ao fundo. Bate-lhe o coração mais depressa, aquilo é um sinal de vida, pensou. Quer dizer, um sinal de presença humana, só pode ser gente. Há com certeza ali gente, e avança mais animado na perspectiva de encontrar alguém, possivelmente uma casa, um abrigo...

Há um cão que ladra, e o som vem daquela direcção. O terreno sobe cada vez mais acentuadamente e ele já percebeu que, alguém que ali esteja, se não o viu já, agora que o cão ladrou já está avisado de que vem ali gente. É quase noite, e o cão agora não se cala. Ele receia que anoiteça e acelera um pouco o passo, embrenhando-se cada vez mais no arvoredo, tentando vislumbrar o fumo entre as árvores, como um farol. Quando finalmente avista o que parece ser uma palhota, vê ao lado o cão que ladra e de repente, quase tropeça num homem que está sentado numa pedra à sua frente. Tranquilo, dir-se-ia à sua espera. É um negro de idade indefinível, de barba e cabelos desgrenhados e que parece sorrir da sua surpresa.
- Vi o fumo e calculei que devia haver gente aqui. Disse, um pouco sem jeito, tentando disfarçar o susto e recuperar o fôlego.

O cheiro a fumo da fogueira no ar e o cão, esquelético, agora de mansinho a rondar-lhe as pernas, cheirando a medo. Mais tarde o negro dir-lhe-ia como achou bizarra a presença de um branco por ali. Há já muito tempo que tinha partido o último. Alguns ainda aguentaram os primeiros anos da guerra, mas aos poucos, um a um, mortos ou fugidos, nem um ficou. Já mal se via o que restava das casas que tinham construído, cobertas pelo mato e ruídas pelo tempo, até uma velha estrada que passara ali perto, por falta de uso, tinha desaparecido. Andaria ele à procura de alguma memória antiga, de algum lugar de infância? Mas quis respeitar o seu silêncio, e deixou-o a recuperar as forças e apaziguar o espírito. Se lhe quisesse contar de onde vinha e ao que vinha, era com ele.
Nessa tarde, muito antes do cão ter ladrado já ele se tinha apercebido lá longe da presença daquele homem caminhando. Quando acendeu o fogo, ainda hesitou em faze-lo, tinha a certeza que o fumo o atrairia até ali, mas resolveu fazer uma trégua com o mundo. Há quanto tempo não partilhava um jantar?
No terreiro frente à casa, uma pequena fogueira no chão ilumina com uma luz amarelada e trémula uma mesa tosca feita de troncos e tábuas, e ao lado, entre duas árvores, uma rede estendida. O cão continua a farejar curioso o recém chegado e o dono enxota-o com o pé enquanto tira do fogo uma panela fumegante e enegrecida pelo fumo, que coloca sobre a mesa. Senta-se e com um sorriso convida o outro para que se sente também. Dividiram a comida da panela e comeram em silêncio.
Confundindo-se com o fumo da fogueira, pairava em volta uma subtil e indefinível nuvem de mistério.

O negro falar-lhe-ia também da escola onde o seu pai um dia o deixou, miúdo, quando foi trabalhar para longe, para as minas, e do primeiro branco que viu. No caso, uma mulher. Tinha-se aventurado naquele desterro longínquo como professora, e ele a princípio estranhou muito a cor da sua pele, fazia lembrar cadáver, dizia, como aqueles que tinha visto uma vez a boiarem no rio. Fez-lhe muita impressão. Mas depois conheceu-lhe o sorriso, e o cheiro, ambos tão doces, e achou que cheirava a flores. Anos mais tarde viria a reencontrar esse cheiro e a saber que tinha um nome, e que vinha de uma planta que ele não conhecia. Era alfazema. Nunca mais deixou de sentir esse cheiro sempre que se lembrava dela, a sua primeira professora. Essa recordação vivia com ele desde aquela primeira vez em que ela o envolveu nos seus braços e o reconfortou num momento difícil. Nessa altura já se tinha esquecido que tinha cor de cadáver, e até achava graça porque quando ela se zangava, o que às vezes acontecia, ou quando se ria muito, mudava de cor, passando do branco ao cor de rosa, chegando quase ao vermelho. Os outros miúdos até diziam que ela tinha sangue de camaleão, coitadinha...
Depois de todos estes anos, lembrava-se agora de quando ela chegava ao seu lado e lhe dizia quase ao ouvido: Hossi, tens que escrever direitinho sobre as linhas. E lhe pegava na mão com carinho e o ajudava a escrever as letras mais difíceis.
Depois de terem comido, deixaram-se estar sentados em silêncio, ouvindo os sons da noite no mato e o crepitar do fogo ali ao lado. Esse silêncio avivava detalhes que provavelmente em contactos mais ruidosos lhes escapariam. Um pequeno gesto, um sorriso, um franzir de sobrancelha tomavam ali uma dimensão nova. Talvez noutra circunstancia houvesse ocasião para muitas perguntas e muitas explicações, mas ali não pareciam necessárias. O que não evitava uma ligeira inquietação no espírito de Hossi. Aquele branco que lhe apareceu ali meio perdido, vinha fugido, ou iria em busca de algo? Perguntava-se se algumas pessoas não andariam às voltas na vida, sem saberem se estão a perseguir uma ideia ou a serem perseguidas por ela. Mas absteve-se de qualquer observação. O outro, entretanto, parecia ouvir essa interrogação e essa dúvida dentro si. Mas naquele momento não era capaz de responder, sentia-se apenas reconhecido por aquele acolhimento. Foi bom ter vindo até ali e encontrarem-se, era a única coisa que poderia ter dito. E Hossi deve ter percebido. Levantou-se e fez-lhe sinal que era hora de irem dormir. Mostrou-lhe uma esteira enrolada junto à parede e indicou-lhe a um canto da casa o sítio onde poderia estende-la. Dos restos da fogueira tirou dois pequenos troncos ainda acesos e trouxe-os para dentro, deixando-os no chão junto à porta, para afastar o frio e os mosquitos, e deitou-se no outro canto.

Teve dificuldade em adormecer. Aquela visita inesperada acordara-lhe memórias antigas. Lembrava-se da escola, onde aprendeu a falar e depois a ler e a escrever em Português. E da professora, que ao mesmo tempo que ensinava aos alunos a sua língua, ia aprendendo a deles com eles. Na altura não ligou a esse pormenor, só muito mais tarde, já adulto, percebeu como isso era raro e pouco valorizado entre a população branca. Mais tarde, já homem, quando se lembrou de a ir procurar, soube com tristeza que se tinha ido embora. Uma denúncia de um chefe de posto, e mandaram-na embora juntamente com uns padres holandeses de uma Missão protestante. Andavam a estudar a fonética das línguas indígenas e a tentar criar e organizar uma escrita para elas. Com gramática, dicionários e tudo. Inventou-se uma história qualquer de incentivo à sublevação e foi o suficiente. Ficou a saber que afinal havia ainda mais injustiças, para além daquelas que ele próprio sentia na pele.
Acordou de madrugada surpreendido com um fenómeno que já tinha pressentido na véspera, pouco antes de adormecer. É que estava de novo a pensar em português!
Durante todo o tempo que ali viveu isolado, unicamente em contacto com a natureza, voltara à sua língua materna para pensar e organizar o mundo à sua volta. Era-lhe suficiente. Mas agora, com aquela presença, reencontrava uma linguagem e uma forma de pensar que julgava esquecida. Subitamente o mundo mudava de tamanho. Tantas coisas, tantas ideias lhe ocorriam agora e que pareciam desaparecidas, simplesmente por não serem verbalizadas.
Viera para ali viver depois que terminaram as guerras, não que houvesse algum motivo especial, apenas estava cansado de tantos anos de barbaridades e injustiças. Primeiro tinham-lhe dito que tudo era culpa dos brancos, e os brancos foram-se embora. Depois que era culpa da guerra... e foram muitos anos de guerra. E quando a guerra acabou, resolveu voltar à sua terra de origem e traçar sozinho o seu destino. Conhecia bem aquele sítio e achou que era um bom lugar. Tinha andado por ali em criança acompanhando o pai na caça, e nunca mais se esqueceu daquela nascente que brotava ali perto, rodeada de árvores e onde muitos animais vinham beber de madrugada. Há muito tempo que não tinha a companhia de um ser humano e às vezes dava por si a falar com o cão, outras vezes com os pássaros que costumavam esvoaçar por ali. Quando aceitou os medronhos que o outro lhe ofereceu à chegada, achou aquilo uma curiosa coincidência. Por várias vezes, quando se levantava cedo...

domingo, dezembro 05, 2004

O rumor propagou-se e a novidade, em poucos minutos, deu a volta ao bairro: Amanhã virão os helicópteros à pista do antigo aeroporto, com o seu carregamento de arroz e peixe seco. Já não era sem tempo! Em casa o arroz é racionado cuidadosamente, e contado grão a grão desde há várias semanas. E quase não nos lembramos do gosto do peixe. Há bem dois meses que acabou.
À noite fez-se uma comezaina, contando com o aprovisionamento de amanhã. O dobro da dose de arroz para todos.
Preparei e verifiquei o estado da carroça. É preciso que ela não nos deixe no meio do caminho com o nosso carregamento. Preveni as raparigas que estavam requisitadas desde as quatro da manhã para o dia todo. Eu sei que isso não lhes agrada nada, que elas preferem ir para a rua na companhia do seu grupo de adolescentes desocupados, sempre prontos para alguma tropelia. Mas como culpa-las? Aqui já não há trabalho, como no resto do país. Nós só sobrevivemos graças à ajuda dos países desenvolvidos. Já não há electricidade, nem água corrente, nem gaz. As casas e os prédios, que são da época em que ainda havia uma certa prosperidade, caiem em ruínas aos poucos e poucos. O sismo de 24 e depois o de 35 acentuaram ainda mais a fragilidade de todas estas construções.
Desde as quatro da manhã, uma certa efervescência foi começando a animar o bairro. Em pequenos grupos, e depois formando um cortejo de maltrapilhos, dirigimo-nos para a cidade para depois tomar o caminho do antigo aeroporto, a uma dezena de quilómetros para norte. Uma ligeira brisa agita o arvoredo das avenidas desertas, invadidas por arbustos, com o asfalto a desfazer-se e a maltratar as carroças, atrelados e veículos de transporte diversos. Uma surda angustia invade-nos a todos; haverá comida suficiente para toda a gente?
A recordação dos tumultos infernais, verdadeiras batalhas, tiros sobre a multidão pelos militares que acompanham os helicópteros está bem presente em todos os espíritos. Claro que esses representantes dos países ricos são reverenciados, assim que abrem as portas dos aparelhos. Mas, por vezes, só há ódio para com eles, quando, rapidamente, se percebe que o carregamento é insuficiente. Desde que uma equipa de ajuda humanitária se fez massacrar uma vez nessas condições, as intervenções fazem-se sob protecção de militares. Não militares nossos, que já não há. Militares deles, bem alimentados, bem equipados e sobretudo bem armados que nunca hesitam em atirar à mínima tentativa de manifestação da nossa parte.
Por volta das sete horas chegamos à vista do aeroporto, visível de longe com as suas carcaças de aviões desactivados. Vindo de todas as direcções, uma multidão ruidosa aglomera-se à entrada. Os helicópteros que trazem a comida ainda não chegaram. Apenas alguns aparelhos poisados, que trouxeram os funcionários das organizações humanitárias e os militares encarregados da manutenção da ordem. Sem que seja necessário darem-nos instruções, as filas de espera vão-se formando, umas vinte, talvez. Cada fila, uma a uma, avança então pela pista, guiada pelos funcionários. Não há praticamente nenhum contacto com essa gente. A maioria, não fala a nossa língua. E nós não falamos a deles. Um roncar começa a ouvir-se no céu, para norte. São eles que chegam! Toda a gente observa as nuvens baixas, tentando distinguir a silhueta característica desses aparelhos enormes, capazes de transportar até 200 toneladas de carga.
A esquadrilha aparece enfim, saudada pelos gritos da multidão. O barulho é ensurdecedor. Uma vintena de aparelhos poisa envolto numa nuvem de poeira. A multidão, disciplinada, não se mexe. É preciso esperar a paragem completa das turbinas, esperar que as portas sejam abertas.
A distribuição faz-se sem problemas. A conjuntura favorável, muito favorável mesmo, nos países desenvolvidos, incentivou-os a aumentar a ajuda que levam aos países pobres. Hoje regressamos com bastante mais comida do que é costume receber aqui. A algumas centenas de metros do aeroporto, uma velha tabuleta de estrada indica, à esquerda Courcelles, em frente Lyon. É nesta direcção que seguimos, contamos chegar lá para o fim do dia.

Ah! talvez eu deva situar a acção mais precisamente!
Estamos em 2060 e eu tenho 80 anos, e vivo com a minha família no lugar onde era a antiga cidade de Lyon. Eu conheci, no final do século XX e no início deste século, a época onde a vida era ainda possível e tinha um sentido. Assisti depois, ao lento desmoronar das nossas estruturas económicas e sociais. A subida e o crescimento dos "países pobres" dessa época incitou os investidores, à procura de melhores lucros, a deslocarem-se de preferência para esses países, em detrimento das economias europeias e norte americanas. A explosão da China como mercado activo e sobretudo a deslocação para esses países de estruturas de produção competitivas, e de um sistema de educação formador de elites fiáveis provocou, por volta de 2035, o golpe de misericórdia nas economias ocidentais.
Não foi preciso mais que o espaço de duas gerações para que a Europa se tornasse numa região pobre, totalmente dependente da ajuda internacional. Os funcionários da ajuda alimentar são chineses, e os militares que os acompanham são originários da federação indo-pakistano-afgã. O comissário da Organização Mundial encarregado da administração da Europa é coreano e o seu adjunto é senegalês. Nós...nós não somos mais que uns merdas... prontos a tudo por uns sacos de arroz e alguns quilos de peixe seco.
"le Visiteur"

quarta-feira, junho 02, 2004

Fiel era um pastor mucubal

(Capítulo I)


Desde manhã cedo que era grande a azáfama junto à praia e ao longo do cais. Camionetas carregavam e descarregavam sacos, caixotes e todo o tipo de mercadorias. Gente a correr apressada, abraços de encontros e despedidas, gritos, algazarra. Era dia de navio.
Acostadas ao cais, grandes barcaças recebem as cargas directamente das costas dos negros para as levarem depois até aos guindastes do navio que ficou ao largo, fundeado lá longe por falta de porto e de fundo. Era uma operação lenta e cheia de percalços que, começando de manhãzinha, por vezes terminava pela noite dentro.

(porto de Moçâmedes na primeira metade do séc.XX)


Moçâmedes daquele tempo era uma pequena cidade de cerca de dez mil habitantes encravada entre o deserto e o mar. Casas baixas e ruas de traçado rectilíneo, provavelmente ainda uma herança do Marquês, e uns quantos armazéns e fábricas de transformação de peixe junto à praia. Intermináveis tabuleiros com peixe a secar ao sol davam à terra um cheiro característico.
O que parece ter estado na sua origem, foi o desembarque naquela baía, em meados do século dezanove, de uma centena de portugueses vindos de Pernambuco, no Brasil.
Anos mais tarde, uma linha de caminho de ferro, descendo das terras altas do interior, veio encontrar ali o seu términos.
Mas hoje há algo de diferente. Depois de uma longa viagem enfiados nuns vagões do caminho de ferro, uma manada de bois chegou de madrugada e aguarda na praia a sua vez de embarcar.
Fiel, um pastor Mucubal que trouxe o gado até ali, com a ajuda de uma vara comprida vai mantendo os animais junto ao mar enquanto espera ordens do branco que comprou os bois e engendrou aquele negócio de mandar o gado vivo para a Metrópole.
O comerciante, o senhor Correia, anda desde cedo em grande correria à procura do comandante do navio que veio a terra assistir ao embarque e falar com o veterinário, mas entretanto perdeu a noção das horas nos braços de uma bubulina local. Desde a primeira vez que ali aportou que aquilo passou a fazer parte dos seus rituais de viagem, e o navio não sai se não se cumprirem. São procedimentos obrigatórios nestas navegações de alto mar, senhor Correia. Dizia ele ao afogueado comerciante quando este finalmente o encontra no bar do hotel, com um suculento bife com dois ovos a cavalo à frente e uma viúva espampanante toda de folhos e olhos derretidos ao lado. Tenha calma homem, você tenha calma, tem as papeladas todas em ordem não é verdade? Então sente-se e beba aqui uma cerveja com a gente, que o navio não sai sem mim.
A princípio não foi fácil convencer os animais a embarcar. Mas um a um, de olhos vendados, o pastor lá os foi conduzindo por uma rampa de tábuas, com alguns trambolhões pelo meio, para dentro das barcaças. Mais tarde, já encostados ao navio, foi mais fácil. Bastou colocar-lhes umas cilhas por baixo da barriga e logo eles se elevavam no ar içados pelos guindastes a caminho do porão. Fiel não sabia contar, mas isso não impedia que, no meio daquelas dezenas de animais, se faltasse algum, ele não desse imediatamente por isso. Um mistério!
Nessa primeira noite, acabou por adormecer entre os fardos de palha e os sacos de ração que também embarcaram para que os animais não morressem de fome durante os quinze dias de clausura que tinham pela frente.
Tinha ficado combinado com o comandante que o pastor acompanharia o gado até Lisboa e que quando o navio voltasse a descer até ali, um mês ou dois depois, dependia, o trariam de volta.
Parecia bom tipo, o comandante. Logo nos primeiros dias avisou a tripulação para que deixassem o homem em paz e não o chateassem por causa do seu ar primitivo. É que alguns deles estranharam demais a sua tanga, os seus enfeites e hábitos e exageravam um pouco na curiosidade. Levou algum tempo a aprenderem a respeitar aquele homem que quase não falava mas sorria para toda a gente e executava as suas tarefas de tratador de gado com desvelo.
Ao fim de vários dias ainda ninguém o tinha conseguido convencer a largar os bois por uns momentos e subir ao convés a ver o mar. Os balanços e o enjoo eram tão estranhos para si como para os seus companheiros de viagem, e mantinha-se junto deles no porão com a única preocupação de lhes ir mudando a palha e providenciar água e ração quando achava que era preciso. Ia esquecido de si, o que ajudava a suportar a tormenta, e quando podia parar uns instantes sentava-se, fechava os olhos e adormecia.
Só quando foi preciso deitar borda fora um bezerro que nasceu morto, é que ele se encheu de coragem e subiu ao convés com o bicho aos ombros, todo ensanguentado, e depois se lavou com um balde de água salgada. Uma vaca que vinha grávida, com os sobressaltos da viagem, tinha abortado. Ele ainda tentou em desespero salvar o animal, mas não foi capaz. Agora havia que tratar da mãe. Ofuscado com aquela luminosidade tão intensa à sua volta, procurava falar ao comandante, queria explicar-lhe o sucedido, e pedir-lhe uma garrafa de vinho. Tinto, se houvesse.
Quando avisaram o comandante foi uma risota geral entre a tripulação. Atão vocês não percebem? Dizia um mais boçal, a mim também se me morresse um filho ao nascer eu havia de querer beber para esquecer. E ria-se. Mas o comandante não se riu, e quis saber mais. Desceu ele próprio da ponte para se inteirar junto do Fiel sobre o que se estava a passar. Este explicou como pôde que o vinho não era para ele, era para dar à vaca. Já tinha visto os brancos fazer aquilo quando uma vaca estava fraca do esforço, e costumava resultar.
O comandante mandou buscar uma garrafa de vinho da pipa da despensa e desceu com o pastor ao porão. Não que estivesse desconfiado, mas porque quis acompanhar aquele momento que parecia tão importante para o pastor. Era bom que os animais aguentassem a viagem com saúde. E que diabo, a vaca também era passageiro, ou não? Havia de se lembrar de escrever isto mais logo à noite no Diário de Bordo.
O comandante, que todos os dias dava uma volta pelo navio para ver como estava tudo, no dia seguinte, quando terminava a sua ronda foi certificar-se que a vaca estava de facto a arrebitar, e convidou o pastor a subir à ponte de comando com ele.

Fiel olhava com espanto para todos aqueles aparelhos complicados e aquela roda gigante ali no meio, enquanto ouvia as explicações. Era com ela que se guiava o navio, dizia o comandante. Ele sorria, sorria sempre que alguém lhe falava. Com aquele sorriso alegre e espontâneo, mesmo se às vezes não entendia o que lhe diziam, desarmava qualquer animosidade que pudesse surgir. Sempre com os olhos a brilhar, olhava para tudo e bebia cada uma das palavras, as que conhecia e as outras. Essas procurava fixa-las, mais tarde viriam provavelmente a ganhar um significado. Entretanto ouviu-se uma voz por cima das cabeças e ele assustou-se. O comandante riu-se e explicou-lhe apontando o pequeno auto falante no tecto, isto é a voz do maquinista que sai por aqui, ele fala lá em baixo da casa das máquinas e nós ouvimos aqui, assim não precisamos de andar sempre a correr para baixo e para cima. Também podemos falar para ele, queres ver? E aproximou-se dos comandos, ligou um interruptor e falando um pouco mais alto: Alô Gervásio, está a ouvir-me? Esperou uns segundos e depois ouviu-se a resposta. Sim, comandante, é o Gervásio, estou a ouvi-lo... É que temos aqui uma visita na ponte que lhe vai dizer qualquer coisa. E dirigindo-se ao Fiel disse-lhe para ele falar, mas tinha que falar alto para o Gervásio poder ouvir e depois responder. Fiel perdeu parte do sorriso e ficou hirto sem saber o que fazer e muito menos dizer. Ali ao lado, o imediato e o piloto observavam em silencio a cena desde o início e faziam força para não rir. Então Fiel, fala lá, insistia o comandante. Fala... Mas falar o quê? Perguntava atrapalhado o pobre do homem que não entendia como é que se podia falar sem ter assunto. Vá lá, diz... qualquer coisa. E ele disse: Qualquer coisa! Disse para o ar, sem perceber bem o que dizia. Os outros dois não aguentaram e explodiram, não conseguiram conter-se mais e soltaram as mais sonoras gargalhadas que alguma vez se ouviram naquele navio. O comandante, morto de riso também mas mais contido, tentava em vão responder ao Gervásio que do outro lado dizia qualquer coisa, mas não se conseguia perceber, no meio daquela gargalhada geral. E o Fiel ali no meio, quieto, sem entender.
Alô Gervásio , está a ouvir-me. Está a ouvir-me, Gervásio? Lá conseguiu finalmente falar e ouvir o maquinista, depois dos outros saírem agarrados à barriga para o lado de fora da ponte. Já percebi, comandante, já percebi que tem aí consigo o nosso amigo Fiel. Foi-lhe aí fazer uma visita, foi? Então Fiel, que tal achas a vista aí de cima, ãh? Já se vê o puto? ( o puto, era uma expressão mais ou menos generalizada na época para designar a Metrópole, Portugal Continental) O comandante fazia-lhe sinal que era para ele que outro estava a falar. Sim senhor, respondia o Fiel muito direito, com aquele ar que têm os cegos que não vêem com quem estão a falar. E como é que estão os bois, ó Fiel? Quando é que comemos uns bifes? Perguntava o outro do outro lado, a rir-se também. O Fiel estava embaraçado, perdera o sorriso, e fazia um esforço para entender o que teria feito rir os outros daquela maneira. O comandante percebeu e resolveu acabar com aquele constrangimento. Pôs-lhe um braço sobre o ombro e respondeu ele ao maquinista. Ok Gervásio, o Fiel agora não está para aí virado, mas vamos combinar um jantar de churrasco um destes dias. Obrigado e vou desligar. E desligou o interruptor.
Quero mostrar-te aqui uma coisa. E ainda com o braço sobre os ombros do pastor, encaminhou-o para a mesa das cartas ali ao lado. Vou-te mostrar onde é que nós estamos. Nós estamos aqui, e apontou para um ponto sobre a carta, onde estavam escritos uns rabiscos a lápis. Estás a ver, isto aqui é a terra, nós partimos daqui. E apontava um outro ponto mais a baixo. Já fizemos este caminho todo. E seguia o risco traçado na carta desde o porto por ali a cima. E ia assinalando as várias marcas ao longo do risco, estás a ver? Aqui é um dia, dois dias, três dias. O Fiel, com um ar intrigado, olhava a carta e olhava o mar todo em volta através das grandes vigias. Agora estavam os dois sozinhos, os outros dois tinham saído entretanto, devia-lhes ter dado a sede de tanto rirem.
Mas me explica uma coisa, perguntava o Fiel, como é que no meio desse mar todo, sabes onde é que estás a ir? Boa pergunta!
O comandante tirou de uma caixa ali ao lado uma bússola e saiu com ela para fora da ponte. Chega aqui que vou te mostrar. E com a bússola na mão, mostrava ao outro. Estás a ver aqui esta seta? Ela aponta sempre para o mesmo sítio, estás a ver? Ali é o norte. E ia rodando devagar para um lado, depois para o outro, e era verdade, a seta apontava sempre na mesma direcção, a proa do navio, por mais voltas que se desse.
Fiel quis experimentar e pegou na bússola, primeiro a medo e depois divertido.
Ué! Parece feitiço, e ria-se nervoso enquanto rodava, uma vez e outra, e outra ainda mais bruscamente, a ver se enganava a seta. Mas não, ela lá voltava sempre ao mesmo sítio. Ué! Esses brancos...
Lembrava-se de já uma vez ter visto uma coisa parecida na mão de um engenheiro com quem se cruzou. Vinha num jeep, e já nessa altura tinha ficado curioso. Mas isso é quê, afinal? Perguntou intrigado com aquele mistério. Isto é uma bússola, explicou o comandante, aponta sempre para o norte. E ali à frente da roda do leme está outra igual a esta, maior, e é com ela que a gente se orienta.
Mas, e como é que ela sabe e aponta sempre no mesmo sítio? Pergunta ele desconfiado. O comandante tentava encontrar uma explicação simples. Esta seta é um íman que é atraído pelo pólo magnético que fica perto do... e parou. Não, esta explicação que lhe parecia simples, talvez não fosse a mais adequada. Calou-se uns instantes, e depois recomeçou. Sabes, daqui ainda não se vê, mas mais alguns dias e eu vou te mostrar. Há uma estrela, que a gente chama de estrela polar, e que está sempre no mesmo sítio, nunca muda. Há de aparecer ali à frente. E apontava para a linha do horizonte por cima da proa do navio. O Fiel ouvia-o com atenção, tentando perceber. Já viste que de noite as estrelas, todas, vão andando devagarinho e passam de um lado para o outro do céu, não viste? O outro abanava a cabeça que sim. Isso, mas há uma, essa tal estrela polar, que nunca se mexe, não sai do mesmo sítio, fica lá sempre no cimo da terra, que nós chamamos o Norte. Assim que ela aparecer eu mostro-te. E houve uns homens antigos que descobriram que este metal, uma espécie de ferro, está sempre a apontar na direcção dessa estrela. Percebes? Ele dizia que sim com a cabeça, mas com pouca convicção. E depois de pensar um pouco... Mas então pra ir no puto é só seguir onde a seta diz? É mais ou menos isso, sim, concordava o comandante. Como estamos a navegar para norte e a seta aponta para o norte... Ah! Afinal é fácil, então. Dizia o Fiel que parecia ter descoberto a pólvora. Mas depois calou-se e ficou mais uns momentos pensativo. Mas então... retomava o raciocínio. Quando estás a vir do puto para cá? E calou-se de novo, intrigado. Aí a seta aponta para trás, disse o comandante. E como é que vais saber então aonde estás a ir se a seta aponta para trás? Tinha lógica. Olha, disse-lhe o comandante, como tu vais voltar depois connosco lá da Metrópole para Moçâmedes outra vez, aí eu explico-te. Combinado? E vais ver daqui as uns dias, assim que ela aparecer eu mostro-te, a tal estrela polar. Sim senhor, disse o Fiel, interessado, para quem combinado era combinado. Mas sô comandante, posso ver ainda ali outra vez? E apontou para a carta que tinha estado a ver há pouco. Eu mostro-te, e entraram. O comandante voltou a pegar na carta e apontou-lhe de onde tinham saído e onde estavam agora. O Fiel olhava em pormenor para ver se percebia o que via, e nisto o comandante lembra-se. Espera aí, que eu tenho aqui outra melhor. E tira uma de uma gaveta larga cheia de cartas, e põe por cima da primeira. Esta é melhor, olha para aqui.
Aquela era diferente, além do mar e da linha da costa, tinha também um grande pedaço para o interior do território. Estás a ver Moçâmedes aqui? A tua terra é aonde, como é que se chama? Virei, disse ele. O quê? Perguntou o comandante, que não tinha percebido. E ele repetiu, Virei. A tua terra chama-se Virei? É, a minha terra é no Virei, sim senhor.
Virei, disse o comandante, saboreando a palavra, bonito nome! Ora deixa cá ver se se vê aqui.... Numa terra que era um imenso deserto, não foi preciso procurar muito. Além de duas cidades, havia para aí mais meia dúzia de pequenos povoados, e lá estava. É isto aqui, e com um dedo por cima indicava o sítio. Numa letra pequenina conseguia ler-se, Virei, no meio do deserto talvez a uns duzentos quilómetros do mar.
Isto aqui é Moçâmedes, ali fica Sá da Bandeira, estás a ver? E esta linha aqui é a linha do comboio onde tu vieste com o gado. O Virei é aqui mais em baixo. E o Fiel baixava a cabeça sobre o mapa a tentar ver algum pormenor, alguma coisa que ele reconhecesse.
Mas isso...quem é que fez isso assim? Perguntava ele intrigado. Como é que foram saber que esta terra é aqui que aquela é ali? E apontava. Aqui parece tudo perto, mas é looonge! E prolongava o ó para sublinhar a distância. O comandante sorria e dizia, tentando simplificar, que antigamente era difícil saber mas que agora com os aviões, eles tiravam fotografias lá do ar cá para baixo e depois faziam os mapas.
E o Fiel a tentar vislumbrar a sua terra no mapa, confuso, entretanto lembra-se dos bois. Bem, tenho que ir. Disse ele. Já estava há muito tempo longe dos bichos e isso não era bom, tinha que voltar.
E quando se despedia e se preparava para descer, cruza-se com os dois de há bocado que vêm de volta, bem dispostos. E diz um deles. Então Fiel, o senhor comandante já te ensinou a trabalhar com o sextante? Olhe que já faltou mais, disse o comandante. Já faltou mais! O Fiel quando voltar, e já não tiver os bois para cuidar, quem vai ser o piloto vai ser ele ele. Vocês podem tirar umas férias. E despediu-se dele com uma palmada nas costas.
Fiel voltava para os seus animais com a cabeça cheia de coisas novas para pensar. Um imenso puzlle, e faltavam tantas peças!

O navio não levava passageiros, além da tripulação só vinha o Fiel a bordo, e o comandante tinha dito ao imediato que lhe disponibilizasse um beliche na proa junto da marinhagem, e que tomaria as refeições junto com a tripulação. Mas como ele nos primeiros dias nem saía do porão, sempre enjoado, sempre junto dos bois, o cozinheiro Almeirim começou a levar-lhe todos os dias uma marmita com comida.
Ao Almeirim, cujo verdadeiro nome era Custódio, e que desde que entrou para a Marinha e depois embarcou ali nunca mais tinha voltado à terra, aquele cheiro a gado fazia-lhe muitas saudades. E era sempre com prazer que descia ao porão, de cada vez que levava o almoço ao Fiel. Normalmente passava por ali um bocado da tarde até que fosse preciso ir tratar do jantar. Era engraçado que o cheiro das vacas, que lhe era tão familiar, o daquelas tinha qualquer coisa que o intrigava, que era diferente. Parecia-lhe mais agreste, mais selvagem, qualquer coisa que não conseguia explicar. Seria com certeza dos pastos que eram diferentes, do clima, e não conseguia deixar de pensar, como cozinheiro, nos belos bifes que um animal daqueles daria. Mas não falou nisso ao Fiel, os bois não eram dele. E nem podia imaginar o que o outro iria sentir quando se separar deles à porta do matadouro.
Nos trópicos anoitece cedo, e um fim de tarde em que o cozinheiro regressava à cozinha depois de ter estado a ajudar o Fiel a mudar a palha do gado, este subiu com ele ao convés e ficaram um pouco a ver o pôr do sol encostados à amurada. Deviam estar por alturas do equador e naquela altura do ano era época de grandes calmarias naquela zona. O navio seguia agora sem balanços num mar chão, e a única brisa era da própria deslocação do navio. Com o pôr do sol o tempo refrescava um pouco e o Almeirim perguntou. Ó Fiel, tu vais desembarcar em Lisboa assim como andas vestido? E olhava para ele que só trazia em volta da cintura uma coisa que não se percebia bem se eram uns calções, se uma tanga, se quê. E além disso lá faz frio, não é como na tua terra! Na minha terra à noite também é frio, tenho casaco. Respondeu ele, que tinha de facto trazido um velho casaco comprido que lhe dava pelos joelhos. Mas isso não chega, não trouxeste mais nada? Nem sapatos... O outro não parecia dar muita importância ao assunto e continuou a olhar o mar com o nariz apontado ao vento. Era bom sentir aquele cheiro novo e fresco. Mas o que o maravilhava mesmo, era quando conseguia ver um peixe voador. Parecia uma criança. Ué! Olha ali, olha só, e ficava a segui-lo fascinado até que ele mergulhasse de novo no mar.
O Almeirim, depois de lhe ter passado aquele enjoo inicial, insistiu com o Fiel para que viesse comer à cantina junto com ele e com os outros, até tinha sido uma ordem do comandante, dizia ele, e depois de alguma resistência, ele lá acabou por ir. Mas uma única vez. Achou tudo muito barulhento, eles falavam todos muito depressa e todos ao mesmo tempo enquanto comiam, e ele não percebia nada. Riram-se dele por comer com as mãos e de outras coisas que ele não percebeu nem se interessou por perceber. Preferiu ficar no seu canto, sossegado e em silêncio.
Passou a só ir à cozinha quando só lá estava o Almeirim, normalmente a meio da manhã enquanto ele preparava o almoço. Bebia uma boa chávena de café bem quente e, quando era preciso, ajudava-o a descascar as batatas.
Quanto tempo faltaria para chegar ao tal puto?



Há dois ou três dias tinham passado a linha do equador e aproximavam-se das ilhas de Cabo Verde. O Fiel estava preocupado com a saúde dos animais, alguns deles tinham deixado de comer e estavam muito enfraquecidos, receava que começassem a morrer. Pediu que avisassem o comandante, e este foi pessoalmente ver o que se passava. Mostrou-lhe as vacas prostradas que, por muito que se insistisse, se recusavam a comer. Porque seria? Talvez a tristeza, arriscava o Fiel. Mas o comandante não ia nessa da tristeza, e pensando se não estaria para ali a germinar alguma epidemia, resolveu perguntar via rádio para S. Vicente em Cabo Verde se havia algum veterinário na ilha.
Acabava de receber a resposta. Afirmativo, havia um veterinário na cidade do Mindelo, e ele insistiu com o rádio-telegrafista para que tentassem localizar o homem, e se possível, pô-lo em contacto com o navio.
Era tarde e já dormia quando o foram buscar para o levarem à ponte. Fiel subiu as escadas meio estremunhado, sem saber bem ao que ia, mas se o comandante chamou....
O comandante tinha o tal veterinário em linha e queria saber mais pormenores. Tenho aqui o homem, ouviu ele dizer, já tenho aqui o homem e talvez ele possa explicar, vamos ver doutor, aguarde um instante. E virando-se para o Fiel explicou-lhe que agora era uma coisa séria, que não era brincadeira como no outro dia, estava um doutor veterinário no rádio e queria saber muito bem o que é que se estava a passar com os animais. Tens que explicar. Sim senhor, disse ele muito sério. E explicou como pôde, respondendo às perguntas que ouvia sair do aparelho. O médico tentava fazer um diagnóstico mais ou menos aproximado. Dentro de quanto tempo calcula chegar aqui a S. Vicente? Perguntou. Eu posso estar no porto à vossa chegada. E assim aconteceu.
O veterinário chegou à conclusão que, devido às condições do transporte e ao calor no porão aqueles animais estavam com problemas respiratórios, e era isso que os debilitava. Com um tratamento de antibióticos aguentar-se-iam até à metrópole, disse ele.
Isto tranquilizou um pouco o comandante, mas ao Fiel nem tanto. Levar um animal para o matadouro, se tiver carne ainda tem justificação, mas assim magro, iam matar para quê? Era uma pergunta que ele se fazia.
Estiveram dois dias atracados no Mindelo, o tempo necessário para se fazer um carregamento de banana verde, e para o gado ser examinado e medicado na medida do possível.
Os marinheiros gostavam muito de fazer escala naquele porto, e quando havia tempo, pelavam-se por uma ida a terra. Era um sítio onde, apesar de uma população muito pobre, havia imensas tabernas e música por todo o lado. Ali, um marujo com algum dinheiro no bolso era um senhor. A população vivia muito ligada ao mar e à pesca, e os homens que não tivessem ainda emigrado, eram quase todos candidatos a marinheiros ou a clandestinos. Os que estavam emigrados tinham deixado para trás uma população feminina algo numerosa, que era das coisas que fazia daquela ilha um sítio muito apetecido. Muitas mulheres sozinhas ou abandonadas, muita dança e muito álcool, podia ser uma mistura explosiva. O comandante avisou, como já tinha feito outras vezes, que não queria bebedeiras a bordo nem zaragatas em terra. Quem fosse entrar de serviço tinha que estar pronto e a horas. E além disso havia outra coisa, o navio durante a noite tinha que ser muito bem vigiado, qualquer distraçãozinha e, não seria a primeira vez, furtivos clandestinos enfiavam-se pelo navio como ratos. Em todas as ilhas é assim, não era só naquelas. Por isso não iriam todos a terra ao mesmo tempo. Além dos que estavam de serviço, tinha de ficar mais alguém a bordo.
O Almeirim ainda desafiou o Fiel a ir a terra, mas ele não quis. Preferiu ficar por ali, pela amurada, a sentir os cheiros e a observar as pessoas de um lado para outro falando alto, e a tentar perceber aquele linguajar tão estranho das mulheres que vendiam frutas e peixe nuns alguidares no chão, e as crianças que riam e gritavam de cada vez que vinha um peixe, sentadas com as linhas na beira do cais. Além disso tinha os animais para cuidar, sobretudo aqueles a quem o doutor tinha receitado tratamento.
Acordou a meio da noite sentindo alguma agitação nos animais, apurou o ouvido e pareceu-lhe ouvir uns ruídos no meio da palha. Levantou-se e foi ver. Pareciam-lhe gemidos, estava escuro e tacteando, de repente tropeçou nuns pés que se encolheram com o susto. Quem está aí? Perguntou ele também assustado. Epá sou eu, ó Fiel, sou eu, o Almeirim. E com ele ali deitada, agora se via, uma mulher meio despida. Mas... o Fiel não sabia bem o que dizer. Eh pá, tive que trazer a moça para aqui, não a podia levar lá para cima que somos cinco no quarto. Desculpa lá se te acordei, ela mais logo já vai embora, podes ficar descansado.
E o Fiel encolheu os ombros e voltou para o seu canto, do outro lado do porão. Mas teve dificuldade em adormecer. Os risos, os gritinhos e os suspiros que chegavam até ele tiravam-lhe o sono. Pela primeira vez se lembrou da terra, devia estar a começar a ter saudades.
Esta segunda metade da viagem decorria sem sobressaltos. Tanto o Fiel como os animais pareciam ter-se habituado à rotina do mar, e mesmo os animais mais fracos, com a paragem e com os tratamentos, davam sinais de estar a recuperar.
O tempo ia arrefecendo todos os dias um pouco, conforme iam andando para norte, e o Fiel cada vez com mais frequência, quando subia ao convés, trazia vestido o seu casaco. Olha lá, o gajo hoje vem vestido a rigor, comentava um marinheiro. Hoje trouxe o fraque, parece que vai à ópera. Ó Fiel, quando chegarmos, hei de levar-te assim vestido ao Cais do Sodré que vai ser um sucesso. Dizia outro, e riam-se os marinheiros e ria-se ele também, que não percebia o sarcasmo.
Uma manhã, há hora do café, quando entrou na cozinha tinha uma surpresa à sua espera. Isso é para ti, disse-lhe o cozinheiro apontando para um embrulho a um canto. Trouxe-te isso, vê lá se te serve. O Fiel acocorou-se curioso e, com muito cuidado, desembrulhou. Era uma trouxa de roupa. Primeiro umas calças, que segurou com os braços esticados à frente e olhou admirado, e mais uma camisola de lã, e ainda uma camisa e um par sapatos. Ué, mas então... e ia revirando as peças uma a uma, e às tantas, quando pega nos sapatos, coloca-os ao lado no chão, levanta-se e comparou. Foi aí que o Almeirim pela primeira vez reparou naquela desproporção. Quando olhou para aqueles pés, que nunca na vida tinham calçado um sapato, aquilo não eram pés, aquilo mais pareciam barbatanas. Eram uns pés larguíssimos, com umas solas curtidas por muitos anos e muitos quilómetros palmilhados. Epá, não vai ser fácil encontrar uns sapatos para ti, não tinha pensado nisso.
















quinta-feira, abril 22, 2004

A LUSOFOLIA é assim como um albergue espanhol, se trouxerem curiosidade e os olhos limpos...