domingo, dezembro 05, 2004

O rumor propagou-se e a novidade, em poucos minutos, deu a volta ao bairro: Amanhã virão os helicópteros à pista do antigo aeroporto, com o seu carregamento de arroz e peixe seco. Já não era sem tempo! Em casa o arroz é racionado cuidadosamente, e contado grão a grão desde há várias semanas. E quase não nos lembramos do gosto do peixe. Há bem dois meses que acabou.
À noite fez-se uma comezaina, contando com o aprovisionamento de amanhã. O dobro da dose de arroz para todos.
Preparei e verifiquei o estado da carroça. É preciso que ela não nos deixe no meio do caminho com o nosso carregamento. Preveni as raparigas que estavam requisitadas desde as quatro da manhã para o dia todo. Eu sei que isso não lhes agrada nada, que elas preferem ir para a rua na companhia do seu grupo de adolescentes desocupados, sempre prontos para alguma tropelia. Mas como culpa-las? Aqui já não há trabalho, como no resto do país. Nós só sobrevivemos graças à ajuda dos países desenvolvidos. Já não há electricidade, nem água corrente, nem gaz. As casas e os prédios, que são da época em que ainda havia uma certa prosperidade, caiem em ruínas aos poucos e poucos. O sismo de 24 e depois o de 35 acentuaram ainda mais a fragilidade de todas estas construções.
Desde as quatro da manhã, uma certa efervescência foi começando a animar o bairro. Em pequenos grupos, e depois formando um cortejo de maltrapilhos, dirigimo-nos para a cidade para depois tomar o caminho do antigo aeroporto, a uma dezena de quilómetros para norte. Uma ligeira brisa agita o arvoredo das avenidas desertas, invadidas por arbustos, com o asfalto a desfazer-se e a maltratar as carroças, atrelados e veículos de transporte diversos. Uma surda angustia invade-nos a todos; haverá comida suficiente para toda a gente?
A recordação dos tumultos infernais, verdadeiras batalhas, tiros sobre a multidão pelos militares que acompanham os helicópteros está bem presente em todos os espíritos. Claro que esses representantes dos países ricos são reverenciados, assim que abrem as portas dos aparelhos. Mas, por vezes, só há ódio para com eles, quando, rapidamente, se percebe que o carregamento é insuficiente. Desde que uma equipa de ajuda humanitária se fez massacrar uma vez nessas condições, as intervenções fazem-se sob protecção de militares. Não militares nossos, que já não há. Militares deles, bem alimentados, bem equipados e sobretudo bem armados que nunca hesitam em atirar à mínima tentativa de manifestação da nossa parte.
Por volta das sete horas chegamos à vista do aeroporto, visível de longe com as suas carcaças de aviões desactivados. Vindo de todas as direcções, uma multidão ruidosa aglomera-se à entrada. Os helicópteros que trazem a comida ainda não chegaram. Apenas alguns aparelhos poisados, que trouxeram os funcionários das organizações humanitárias e os militares encarregados da manutenção da ordem. Sem que seja necessário darem-nos instruções, as filas de espera vão-se formando, umas vinte, talvez. Cada fila, uma a uma, avança então pela pista, guiada pelos funcionários. Não há praticamente nenhum contacto com essa gente. A maioria, não fala a nossa língua. E nós não falamos a deles. Um roncar começa a ouvir-se no céu, para norte. São eles que chegam! Toda a gente observa as nuvens baixas, tentando distinguir a silhueta característica desses aparelhos enormes, capazes de transportar até 200 toneladas de carga.
A esquadrilha aparece enfim, saudada pelos gritos da multidão. O barulho é ensurdecedor. Uma vintena de aparelhos poisa envolto numa nuvem de poeira. A multidão, disciplinada, não se mexe. É preciso esperar a paragem completa das turbinas, esperar que as portas sejam abertas.
A distribuição faz-se sem problemas. A conjuntura favorável, muito favorável mesmo, nos países desenvolvidos, incentivou-os a aumentar a ajuda que levam aos países pobres. Hoje regressamos com bastante mais comida do que é costume receber aqui. A algumas centenas de metros do aeroporto, uma velha tabuleta de estrada indica, à esquerda Courcelles, em frente Lyon. É nesta direcção que seguimos, contamos chegar lá para o fim do dia.

Ah! talvez eu deva situar a acção mais precisamente!
Estamos em 2060 e eu tenho 80 anos, e vivo com a minha família no lugar onde era a antiga cidade de Lyon. Eu conheci, no final do século XX e no início deste século, a época onde a vida era ainda possível e tinha um sentido. Assisti depois, ao lento desmoronar das nossas estruturas económicas e sociais. A subida e o crescimento dos "países pobres" dessa época incitou os investidores, à procura de melhores lucros, a deslocarem-se de preferência para esses países, em detrimento das economias europeias e norte americanas. A explosão da China como mercado activo e sobretudo a deslocação para esses países de estruturas de produção competitivas, e de um sistema de educação formador de elites fiáveis provocou, por volta de 2035, o golpe de misericórdia nas economias ocidentais.
Não foi preciso mais que o espaço de duas gerações para que a Europa se tornasse numa região pobre, totalmente dependente da ajuda internacional. Os funcionários da ajuda alimentar são chineses, e os militares que os acompanham são originários da federação indo-pakistano-afgã. O comissário da Organização Mundial encarregado da administração da Europa é coreano e o seu adjunto é senegalês. Nós...nós não somos mais que uns merdas... prontos a tudo por uns sacos de arroz e alguns quilos de peixe seco.
"le Visiteur"