Já se distinguia ao longe a linha do horizonte, e a primeira claridade da manhã surgia lentamente descobrindo e colorindo o mundo todo à sua volta. Num velho trilho abandonado, ziguezagueando por entre pedras e mato, um homem caminha num passo cansado. Andar, andar sempre, acertar a respiração e o passo e não pensar em mais nada. Com esforço, resistindo ao frio que o atormentou nas últimas horas, só espera que nasça o dia para poder parar e descansar. Um pouco antes de nascer, já se adivinha o Sol, virá dali daquele lado. Ouve-se o cantar de um passarinho saudando o dia, e logo outro e outro de seguida o acompanham num alvoroço de asas e de cantos, ajudando a espalhar o dia pelos campos.
Os primeiros raios de sol já lhe aquecem a cara e lhe queimam os olhos. Abranda um pouco o passo e respira mais calmamente. O que o faz parar, enfim, é o chilrear dos passarinhos. Há quanto tempo os não ouvia? Já não se lembra. Está menos frio agora e procura um sítio onde sentar-se e descalçar as botas. Quer descansar as pernas e dormir. As últimas horas de caminho fê-las como um sonâmbulo - três passos inspira, três passos expira. O trilho que seguia, de ter sido em tempos muito usado, ainda lá estava, ainda se via, e foi isso que o ajudou durante a noite, evitando andar às voltas sem sentido. Afastou-se um pouco do caminho, arrancou umas braçadas de erva, improvisou uma cama, descalçou-se e deitou-se. Fez do saco que trazia o travesseiro, pôs o chapéu sobre os olhos, e pouco depois adormecia.
Deste homem, saberemos a origem quando ele dela nos quiser dar conta. Do seu destino, nem mesmo o narrador o sabe. Deixará que seja o próprio a decidi-lo.
A paisagem aqui é quase agreste, a vegetação escassa e rasteira permite vislumbrar o horizonte todo em volta. Alguns tufos de arvoredo dispersos aqui e além, e sobretudo muita pedra. Ao longe, para nascente, umas montanhas.
Parecia estranho, mas diria que voava. Depois de vencido o medo, podia deixar o solo e elevar-se no ar, não sentir mais o peso e voar. E agora lá do alto, toda aquela visão do mundo... Tudo o que via era novo e nada reconhecia que lhe pudesse dizer onde estava. Sozinho, só com a surpresa do voo, procurava lá em baixo um caminho, qualquer coisa que reconhecesse, que conseguisse identificar, quando de repente se viu a si próprio naquela madrugada no carreiro que seguia quando.... Uma súbita vertigem e logo a aflição da queda. Num segundo debate-se sem perceber o que lhe está a acontecer, estou a cair! estou a cair! Grita e agita-se quando de repente...
Acorda. Aflito e a transpirar, afasta o chapéu da cara, mas não consegue abrir logo os olhos devido à súbita claridade. Quanto tempo terá dormido? Nesse preciso momento, um passarinho acabava de pousar num arbusto ali muito perto dele, e olhava-o curioso. O ramo ainda abanava, e é isso que lhe prende a atenção enquanto vai entreabrindo os olhos, adaptando-os à luz. Ele e o pássaro olham-se com a mesma estranheza e a mesma curiosidade.
?Eu estava a voar quando acordei!? lembrava-se. Já tinha tido sonhos estranhos outras vezes, mas esquecia-se deles quase logo, e a maioria das vezes, ao acordar, não os conseguia relacionar com a realidade. Mas agora tinha ali por cima da cabeça aquele passarinho a olhar para ele, e a coincidência de se encontrarem ali naquele instante, ele vindo de um sonho em que voava, e um pássaro, talvez vindo dum voo em que sonhava...
Estaria a delirar? Adormecera exposto ao sol, e agora com certeza delirava. Arrastou-se um pouco, para abrigar a cabeça à sombra, fechou os olhos e tentou reconstituir o sonho. Mas do que se lembrava, era que o sonho tinha abruptamente terminado no preciso instante em que tocou a realidade. Como uma bola de sabão que se desfaz quando a tocamos. Dois mundos que não podiam existir em simultâneo, pensou. Seriam os pontos em que se tocam, passagens para outras dimensões? Tentou por algum tempo ainda manter-se naquela fronteira entre o sonho e a vigília mas, sentia a boca seca e na barriga aquele aperto da fome que não lhe dava sossego. Tinha caminhado toda a noite e todo o dia anterior, e só tinha parado para beber água quando atravessou um ribeiro, já muito lá para trás. Aí, tinha aproveitado para descansar um pouco e encher uma garrafa que trazia no saco. Virou-se à procura da garrafa, e olhou para cima. O pássaro ainda lá estava, no mesmo sítio, agora entretido a coçar as penas com o bico, e assim que o viu mexer-se, ficou de novo atento aos seus movimentos. Ele desrolhou a garrafa e, antes de leva-la à boca, encheu primeiro a tampinha, à laia de copo, e esticou o braço colocando o pequeno bebedouro ao seu lado, o mais afastado que pôde, a convidar o passarinho a beber também. E bebeu a água que restava na garrafa. O passarinho não se mexia no seu poleiro e tinha o olhar fixo naquele minúsculo espelho de água que brilhava lá em baixo. Seria uma armadilha para o atrair ao pé do homem? Não, os animais não pensam assim, isso é uma característica humana. Virou-se de lado e tapou a cara com o chapéu, deixando por baixo uma pequena nesga por onde podia ver a tampinha à sua frente à distancia de um braço estendido.
Fruto de uma longuíssima experiência acumulada, a desconfiança dos pássaros possibilitou-lhes uma existência tão antiga como a dos dinossauros. O facto de voarem
permitiu-lhes até sobreviverem ao Dilúvio. Se pudesse escolher um outro animal para reencarnar, seria um pássaro, pensou. Não iria fazer mal àquele. Tinha feito apenas uma tentativa de aproximação amigável, uma pequena oferta em troca de uns momentos de companhia. Será que o animal entendia? Bastava que ele vencesse o medo e descesse até ali para matar a sede, ficaria contente. Prometia deixar-se ficar completamente imóvel, para não o assustar, e mostrar-lhe que podia confiar num ser humano. Pelo menos naquele ser humano.
Abriu os olhos e percebeu que tinha novamente adormecido. Por uns instantes talvez... E reparou com espanto que a água tinha desaparecido, o pássaro devia ter pousado ali enquanto ele dormia, e bebeu-a sem que ele desse por isso. Mas o que era verdadeiramente surpreendente, é que mesmo ao lado da tampinha da garrafa, estava um pequenino fruto vermelho alaranjado, pouco maior que uma cereja. Ergueu-se e olhou em volta, a ver se havia sinais do pássaro, mas não, nem sinais. Pegou no fruto e examinou-o com cuidado, tinha apenas uma pequeno golpe que deve ter sido feito com o bico, ao traze-lo. Era um fruto muito bonito, com uma pele sarapintada de pequenas grainhas brancas. Dir-se-ia um morango, não fosse ser tão redondinho. Hesitou em mete-lo à boca. Cheirou-o primeiro e depois tocou com a ponta da língua no sítio que tinha sido ferido pelo pássaro e achou que era doce, devia ser comestível, portanto. Já não comia nada há bastante tempo, e isso avivava-lhe os sentidos. Era realmente muito doce. Seria venenoso? A natureza é sábia, e pôs nas coisas venenosas sabores normalmente pouco convidativos. Com este raciocínio venceu a hesitação, e trincou-o. Uma metade primeiro, que saboreou lentamente, enquanto observava a outra metade com minúcia, entre dois dedos, quase em frente ao nariz. Tinha umas pequenas grainhas e era delicioso. Que fruto seria aquele? Meteu o resto na boca e levantou-se, saboreando a novidade e tentando localizar o pássaro. Em toda a volta quase não havia árvores, a vegetação era pouco mais que rasteira, unicamente uns pequenos arbustos aqui e além, no máximo da altura de um homem. Aquilo só podia ser fruto de um daqueles arbustos ali das redondezas. Resolveu retomar o caminho. Calçou as botas, amarrou o casaco pelas mangas em volta da cintura, pegou no saco e retomou o velho trilho, observando os arbustos na esperança de encontrar mais frutos.
Manteve aquele sabor na boca durante algum tempo e ia pensando no pássaro. Por onde andaria ele agora? Será que os pássaros têm memória? Se o visse será que o reconheceria? Os pássaros parecem todos iguais, dentro de cada espécie, claro. E aquele era o quê? Um pardal, talvez. Ou seria um rouxinol? Também podia ser... não, andorinha não era de certeza. Cucos, rolas, e foi enumerando mentalmente todos os tipos de aves de que se lembrava. Pardais, pombos, perdizes, codornizes... Como seria que as aves entre elas se distinguiam? como é que um pardal sabe que é um pardal? Lembrou-se que os cucos deixam os seus ovos a chocar nos ninhos de outras aves. Há coisas estranhas na natureza, até havia um filme sobre isso. Um filme...é verdade! E nisto parou. Há quanto tempo foi isso? E aonde foi? Surgiam-lhe imagens desconexas que ele não conseguia organizar e dar sentido. Uma tontura e era a guerra, as mortes e o sangue, o hospital, tudo branco, as batas brancas...e ele amarrado à cama. Uma aflição! Deu por si ali parado sem saber o que fazia, e o que fazer. Respirou fundo, uma, duas, três vezes. Já antes se tinha sentido assim, e disse para si próprio: ? Nada de pânico, nada de pânico, continua o teu caminho! E lentamente foi retomando a marcha, tentando fixar-se na respiração, sincronizando-a com as passadas. Assim era mais fácil. Andar, andar e respirar.
O gosto que lhe ficara na boca lembrou-o que tinha de se alimentar. Começava a sentir-se fraco, não iria aguentar naquele estado mais uma noite de marcha. Aquele trilho iria dar a algum lado com certeza. Mais adiante, onde o terreno subia ligeiramente à direita, havia um pequeno arvoredo. Decidiu-se e resolveu meter por entre o mato, subir naquela direcção. Foi-se aproximando e, observando os arbustos, reparou que num deles, dissimulado entre os outros, havia de facto uns frutosinhos que percebeu quase logo serem iguais ao que o pássaro lhe tinha levado. O arbusto não era grande, pouco mais alto que ele, e estava carregadinho. Arrancou um e meteu-o na boca, saboreando com gosto, calmamente. Depois comeu outro, e mais outro, já com alguma sofreguidão. Os mais avermelhados eram os mais maduros e mais doces. Não só matavam a fome, como os mais sumarentos lhe aliviavam também a sede. Ás tantas, com a boca tão atafulhada que já lhe escorria um suco pegajoso pelo queixo e pelo pescoço, resolveu parar aquela orgia, percebeu que em breve se iria fartar. Havia ainda tantos frutos, porquê aquela sofreguidão? Podia até encher os bolsos e continuar o caminho com uma reserva para o resto da viagem. E foi isso que fez, encheu os bolsos do casaco e voltou ao trilho que tinha abandonado mais a baixo. Sempre podia ir metendo a mão ao bolso quando quisesse enquanto caminhava, se lhe apetecesse comer mais. Mas de momento estava cheio, ou melhor, estava quase enjoado.
De regresso ao caminho, ainda mal tinha retomado o ritmo da marcha e já começava a sentir o estômago às voltas, agoniado. Não devia ter comido daquela maneira. Mas pensou que a qualquer momento podia meter os dedos à boca e vomitar. O pior eram as tonturas que começava a sentir, e que não queria acreditar que fossem provocadas pela fruta. Seriam os frutos venenosos? Ter-se-ia envenenado estupidamente a si próprio? Cada vez se sentia mais tonto e com a vista cada vez mais embaciada. Tentou ainda alguns passos, mas já não conseguiu. Deixou-se cair de joelhos, e vomitou copiosamente.
Um nojo, toda aquela polpa adocicada ali regurgitada à sua frente, e ele naquela posição sem glória. Parecia-lhe que vomitava quilos de fruta.
- Cabrão do pássaro, hein! Pensava alto. E ao tentar levantar-se via tudo a andar à roda. Fez um esforço para se aguentar em pé, mas em vão. Tropeçou nas próprias pernas e caiu. Deixou-se estar assim por uns momentos, deitado, tentando perceber o que se estava a passar. Seria o efeito do veneno?
Finalmente percebeu que estava bêbado. Não era uma sensação nova, mas sempre associara a bebedeira ao álcool e à bebida, e agora só tinha comido fruta. Coisa estranha aquela! Tentava ter alguma lucidez no raciocínio, mas não era fácil.
- Vou ficar aqui sossegadinho um bocadinho, à espera que isto passe. Não é a primeira vez que apanhas uma buzana, pá. Isto passa... e também já vomitaste, o que alivia bastante. Deixa-te estar, que estás bem assim. Falava alto como se tivesse companhia. E o sacana do pássaro, hein? filho da puta, um gajo ali cheio de consideração com os bichos, se calhar o bichinho tem sede, e tal... e o manhoso fodeu-me! E depois de uma pausa, continua. Mas olha que até tem graça. O sonso! Veio de mansinho, apanha-me a dormir, e deve ter percebido que um gajo estava a precisar de alimento e pimba, com a treta de me adoçar a boca...
E assim continuou deitado, de barriga para o ar olhando o céu, enquanto perorava:
- Mas olha que o sacana foi subtil. Se fosse um passaroco malandro ou mal agradecido podia-me ter cagado em cima, por exemplo. Ou pior ainda, vir-me bicar um olho, foda-se! Mas este sacana devia ter sentido de humor. Será que também há humor nos animais? Se eles brincam... E com a treta de retribuir a gentileza da água, deve ter pensado, vou dar-lhe uma coisa doce, o gajo vai gostar, vai à procura de mais e eu vou ficar aqui a ver o gajo rebentar. Bem visto... Se calhar até está para aí escondido a ver-me nesta triste figura, o cabrão.
E com a bebedeira, delirava. Virou-se de lado e tentou descansar, agora já com alguma simpatia pelo passarinho, e até com admiração pelo elaborado raciocínio que descobria no animal.
- Mas que raio de merda é que eu comi? Foi a última coisa que conseguiu dizer para si próprio uns momentos antes de adormecer novamente.
Agora voava no meio de um enorme bando de pardais do campo, e reparava que havia uns quantos que, à parte, se destacavam formando verdadeiras esquadrilhas que faziam as acrobacias mais incríveis que se podia imaginar. E eram vários os grupos de esquadrilhas que se desafiavam, fazendo loopings e descidas vertiginosas para ver quem eram os melhores. Era um mundo fascinante de desafio permanente e de liberdade.
Ele não se destacava no bando. Era um grupo muito grande que voava sobre as cearas, onde faziam grandes razias. Os outros, os kamikazes, como ele lhes chamava, voam à parte, mais alto e em bandos mais pequenos. Faziam voos muito velozes, com acrobacias fantásticas em volta dos campos, distraindo eventuais predadores. E em caso de perigo, avisavam rapidamente os companheiros que comiam calmamente lá em baixo. Eram jovens machos, normalmente. As fêmeas e os mais velhos podiam assim comer tranquilamente os seus grãosinhos de trigo ou do que fosse, e carregarem as ervas para os ninhos.
Mas os kamikazes fascinavam-no. Eram velozes e destemidos e, à parte o exercício do voo, em que eram exímios, não ligavam a mais nada. A não ser acasalar. Depois das suas enumeras façanhas, não lhes era difícil cortejar e seduzir as fêmeas.
Nunca tinha feito parte de nenhuma daquelas esquadrilhas. Por várias vezes tentou isoladamente efectuar loopings e voltas rápidas, e algumas outras manobras que já tinha observado e que lhe pareciam impossíveis de realizar. Mas corriam-se imensos riscos em voos isolados, e o maior de todos era o ficar-se muito vulnerável a qualquer predador. Ele sabia isso. A grande protecção era a presença do bando. Todos protegem todos. O bando era praticamente invulnerável. É certo que por vezes desapareciam alguns, mas o bando permanecia.
A ele fascinavam-no as proezas do voo, e pertencer a um daqueles pequenos grupos era o seu maior sonho. Ser capaz de fazer o mesmo e ser respeitado pela sua audácia. Não desistia da ideia de o conseguir um dia.
Uma manhã em que ainda estavam quase todos às voltas nos ninhos, resolveu sair sozinho e seguiu à distância um pequeno grupo de Kamikazes que costumava treinar muito cedo, aproveitando o fresco da manhã. Poisou num ramo bem alto e ficou a observar de longe. A formação da esquadrilha era perfeita. À frente vai um líder que dirige os movimentos de todos os outros e tudo o que ele fizer os outros repetem instantaneamente, não há nenhum lapso de tempo, nem uma fracção de segundo sequer. Volta à direita, agora à esquerda e para cima, muda de velocidade, desce, acelera, tudo é feito em bloco e ao mesmo tempo, como se de um só corpo se tratasse. Reparou que a posição de líder ia alternando entre todos, com uma sequência que lhe escapava. Qualquer um podia tomar a dianteira e, a partir daí, tudo dependia da capacidade inventiva do líder e da sua experiência para dirigir o grupo até aos limites da aerodinâmica. Essa alternância tem a vantagem de repartir o maior esforço por todos. Os que vão nas linhas de trás voam com muito menos esforço porque não têm que enfrentar a mesma resistência do ar. Por vezes, com muito treino, é possível voar quase sem bater as asas, aproveitando o efeito de sucção dos da frente. Era lindo de ver!
Tão absorvido estava a ver aqueles exercícios que não reparou num outro mais velho que também observava o espectáculo num ramo ali perto.
- É bonito de ver não é? só depois do outro falar é que reparou que ele ali estava. Olhou-o e concordou com a cabeça.
- Mas isto pode acabar um dia, sabes? Insistiu o mais velho. Pode ser que um dia não seja mais possível voar assim.
- Porque é que diz isso?
- Achas que só a comer grãosinhos de trigo se consegue fazer aquilo que eles fazem?
- Mas é uma questão de alimentação? Será assim um esforço tão grande?
- Não é de esforço físico que eu estou a falar, a maioria das aves só come grãos e não é por isso que deixa de voar. É de um outro estado de consciência que eu estou a falar, de outra percepção da realidade que lhes permite aquela comunicação entre eles e aquela eficiência.
- Não estou a perceber...
- Tu não és daqui pois não? e com um ligeiro bater de asas veio pousar no mesmo ramo, quase ao seu lado.
- Não sei de onde é que eu sou, só estou fascinado com aquelas acrobacias, era uma coisa que gostava de ser capaz de fazer. Porque voar sozinho e ir para onde eu quero não tem novidade nenhuma para mim.
.....
- Tem de se passar por várias provas, antes de se ser capaz de fazer aquilo.
- E que provas são essas? Perguntou curioso.
- Para começar, tens de provar que és capaz de arriscar a tua própria vida sozinho em benefício do grupo, e com a certeza de que não terás ajuda de ninguém. Só poderás contar contigo próprio, com a tua coragem e a tua inteligência.
- E se eu aceitar, o que é que tenho que fazer?
- Aos principiantes, a primeira tarefa que lhes é confiada é irem procurar alimento para aqueles que estás ali a ver. Sem essa alimentação eles não têm as capacidades que lhes permitem aquelas proezas.
- E que alimento é esse? É muito complicado, isso?
- Depende do engenho de cada um. Para uns será mais fácil, para outros mais difícil. Alguns pagam com a própria vida.
E deu um pequeno impulso, fazendo balouçar o ramo, bateu as asas e voou.
Não podia perder aquela oportunidade, pensou, precisava de saber mais. O seu sonho parecia envolto num segredo e dificilmente voltaria a estar tão perto, caso o deixasse ir-se embora. Resolveu ir atrás. Seguiu-o e reparou que o outro, provavelmente por ser mais velho e para não fazer grande esforço, aproveitava na perfeição as correntes de ar e quase não tinha que bater as asas para voar. A mais pequena brisa ascendente era por ele percebida antecipadamente. Não voava muito depressa, mas o seu voo sereno parecia um bailado. Viu que estava a ser seguido mas não alterou em nada o seu caminho, deixou que o jovem se fosse aproximando e reparou que, aos poucos, ele lhe ia imitando os movimentos. Ao fim de algum tempo, depois de já estarem a voar praticamente lado a lado, sempre a subir, aproveitando o vento quente, resolve quebrar o silêncio.
- Não há perigo em vir aqui para tão alto?
- Perigo há sempre, sabes que viver é perigoso. Respondeu o outro. Queria mostrar-te a paisagem daqui de cima. E subiram mais um pouco.
A vista dali era soberba! A Terra agora parecia um disco redondo lá em baixo, e em volta, todo o horizonte azul.
- Todos esses campos que vês, sempre nos deram de comer com fartura, nunca houve problemas de comida, podíamos ir rodando constantemente, variando a alimentação, e ninguém se importava com isso. Depois, parece que alguém descobriu a maneira de fazer fogo, mais tarde pesticidas venenos, e desde aí tudo tem vindo a mudar, é uma verdadeira praga. Às armadilhas e aos espantalhos até nos habituámos, foram muitos anos de convivência, quase que já achávamos graça. Ultimamente ouve-se falar de cereais trangénicos. Será que eles conhecem todas as consequências? As fêmeas que se alimentarem com essas plantas, podem até ficar gordinhas, mas em breve deixarão de poder ter filhos. Dentro de algumas gerações, se quiseres encontrar alguém como tu, terás de ir a um jardim zoológico, ou a alguma loja de pássaros para ver os teus irmãos fechados, muitas vezes com as asas cortadas, enfiados naquelas gaiolas horríveis que eles acham muito bonitas e decorativas, a comer alpista de manhã à noite e a gritar por socorro. E eles acham que estão a cantar! O que os vale é que morrem rapidamente. O futuro pode vir a ser sombrio...
- E o tal alimento especial de que há bocado falava?
- Já lá vamos. E continuou. Com as coisas que lá embaixo teimam em fazer, a maioria dos frutos silvestres que sempre existiram, estão aos poucos a desaparecer. Arrancam-se plantas sem sequer saber primeiro que plantas são, e para que servem. Arrasam tudo, chegam a cobrir de cimento sítios onde antes havia plantas que lhes podiam ter aliviado o reumatismo ou evitado o cancro. A fruta que eles comem é cultivada em série, campos a perder de vista, tudo igual, tudo com o mesmo sabor. Até se gabam que não têm bicho, e que não estão bicadas por nós. Pois pudera! E dos frutos silvestres que estão a desaparecer, há alguns que devido às suas propriedades raras correm riscos maiores, por ignorância ou por cobiça, já quase não se encontram nos seus lugares de origem. Vês aquelas pedras ali, junto àqueles montes lá ao fundo? Ali ainda há medronhos. O sítio é bastante difícil de encontrar para quem vai por terra, e é isso que tem ajudado à sua protecção. Só lá vai gente muito raramente, passam-se anos sem aparecer ninguém por ali.
- Então e isso é bom? perguntou o outro, cada vez mais interessado.
- Depende...
- Depende... Depende de quê? Não estou a perceber.
- Depende se esses raros caminhantes encontram medronhos ou não, e da maneira depois como os comem.
Tinham começado a descer. Havia o perigo das águias, e desciam o mais silenciosamente possível, evitando grandes movimentos que pudessem chamar a atenção sobre eles, em direcção ao tal sítio das pedras. A descida foi rápida. Depois de ter feito sinal para que o outro fosse olhando para trás também, porque as águias são muito manhosas e muitas vezes atacam de surpresa vindas de cima, o mais velho seguia à frente cortando o ar como uma flecha. Era admirável a forma como colocava as asas e a atitude do corpo para reduzir ao mínimo o atrito. Acabaram por pousar suavemente no cimo de um pequeno arbusto, depois de uma curta volta de reconhecimento. Havia no ar um perfume doce que ele não percebeu imediatamente de onde vinha, nem o que era. Ainda estava a refazer-se da rápida descida atrás do mestre ( era assim que ele começava a ver o mais velho), e a tentar identificar aquele aroma desconhecido que o envolvia.
- São medronhos. Disse o mais velho enquanto observava a paisagem toda em volta.
Só então reparou que por baixo deles, dissimulados pela folhagem, havia imensos frutos que devido ao sítio em que tinham pousado, não eram visíveis imediatamente. Deu um pequeno salto para um outro ramo mais abaixo, e aí sim, ficou mesmo em frente a um dos frutos que quase podia tocar com o bico. Sentiu-se como que hipnotizado, pela cor e pelo aroma que libertava (àquela distancia quase entontecia), e pelo tamanho também. Eram umas bolas enormes, maiores que a sua cabeça cabeça.
- Posso provar? Perguntou guloso.
- Não te aconselho. Esta fruta tem propriedades mágicas, mas não pode ser comida assim como tu queres, é altamente tóxica. Quem não sabe, e se deixar seduzir e levar pelos sentidos, não vai esperar muito tempo para se arrepender. Isto, consumido assim, pode matar. E depois de uma pausa, continuou. É raro passar gente por aqui, é preciso ter paciência... Bem, agora que já ficaste a saber o que é, vamos embora que estamos longe e já se faz tarde. E bateu as asas para iniciar o regresso.
Ele ainda hesitou, enfeitiçado que estava pela descoberta e pela terrível tentação, mas acabou por regressar também atrás do outro.
Voava com a estranha impressão que ainda voltaria ali um dia. Seguia o mestre, batendo as asas em silêncio, mas havia uma pergunta que lhe atravessava o pensamento. Se os frutos eram tóxicos, e se podiam matar quem os comesse, para que serviriam então? Porque seriam assim tão fascinantes se não poderiam ser tocados? Resolveu esperar. Já tinha percebido que o seu mestre gostava daqueles silêncios e não quis mostrar-se demasiado curioso. Quando ele achasse que era oportuno dizer alguma coisa, di-la-ia com certeza. Entretanto o outro, parecendo que lhe lia os pensamentos, fez uma viragem em direcção a um pequeno ribeiro que passava ali perto.
- Vamos descansar um pouco ali, e refrescar-nos.
Pousaram tranquilamente juntos, sobre uma pedra mesmo à beirinha da água. Depois de beberem e de sacudirem as penas, voltaram a falar.
- Ficaste curioso com os medronhos, não foi? Sabes que alguns frutos e plantas da natureza, têm poderes estranhos que é preciso perceber e saber aproveitar, ou rejeitar. Mas todos acabam sempre por ter alguma razão de ser. Uns são muito bons, e outros podem ser muito maus. Se seguir-mos às cegas os nossos apetites, sem pensar e sem aproveitar o conhecimento que outros antes de nós adquiriram, podemos dar-nos mal. No caso dos medronhos, há animais que os podem comer e não lhes faz mal, se não abusarem. Têm os estômagos diferentes dos nossos e digerem-nos de forma diferente. Mas se os comerem em grande quantidade, acabam por rejeitá-los. Acontece muito a quem não sabe, acabam por vomitar aquilo que não foi absorvido. Fez uma pequena pausa, e depois acrescentou:
- E aí entramos nós...
O outro, que seguia muito atento a explicação, a tentar perceber, não percebeu.
- Entramos nós como?
- Entramos nós, porque assim já podemos comer os medronhos. Falava tranquilamente, como se da coisa mais natural do mundo se tratasse. Os frutos rejeitados dessa forma, sofreram, por acção daquele estômago, uma transformação que lhes eliminou as toxinas que nos fazem mal a nós, o que permite que já os possamos comer sem perigo. Estou a ser claro?
Ele estava sem palavras, nem conseguia olhá-lo de frente. Tentava controlar a sensação de agonia que lhe tinha surgido subitamente. Ele devia estar a brincar! Comer a fruta que tinha sido acabada de vomitar?
- Sim, claro! Foi a única coisa que conseguiu dizer, continuando a olhar para o outro lado, enojado. E que tal são os medronhos depois de serem assim... rejeitados? Ainda conseguiu perguntar, disfarçando o ar de nojo e tentando fazer crer que achava tudo aquilo normal.
- É um verdadeiro manjar dos príncipes! Disse o outro. É altamente energético, e desperta capacidades extra-sensoriais fora do comum. São essas qualidades que tornam alguns de nós capazes de executar aquelas proezas que tens visto. Claro que perdem parte do açúcar, mas continuam a ser saborosos.
Ele não queria acreditar no que ouvia! O mestre afinal estava a revelar-se o grande mestre do embuste. Devia ter logo percebido quando o outro lhe perguntou se não era de cá... Deve ter começado logo aí a preparar a história. E esteve quase para se virar e perguntar:
- Olhe lá, mestre. Os tais ditos sobrenaturais não serão antes gambuzinos disfarçados de pardal? Mas resolveu que não, já agora iria ouvir o resto da história até ao fim. Aquilo só podia ser uma grande partida.
- Pelo que estou a perceber, para se ser iniciado, a primeira tarefa será então ir procurar medronhos acabados de ser vomitados. É isso?
O mestre abanou a cabeça, afirmativo.
- E como deves saber, nestas regiões já não há chipamzés, animais muito pacíficos e grandes apreciadores de medronhos. Eram muito nossos amigos. Mas há muito tempo que foram para outras paragens, só cá ficaram uns outros macacos muito menos espertos e que entretanto mudaram de nome, agora chamam-se humanos. Mas não mudaram muito os seus comportamentos. Andam todos tapados, muitas vezes nem se consegue distinguir os machos das fêmeas, e são muito manhosos. Também são grandes apreciadores de medronhos, e quando não os comem, dão-lhes um tratamento que os transforma numa bebida que eles apreciam muito, chegam mesmo a ficar de cabeça perdida. E, com um ar meio resignado, concluiu. São estes agora o que nos resta para tratar os nossos medronhos.
Era preciso uma grande lata! E continuava com aquela história, como se ele não tivesse já percebido que aquilo era tudo uma grande aldrabice.
- Mas, segundo ouvi dizer, arriscou o jovem pardal, esses tais ditos humanos, quando apanham algum de nós, enfiam-no logo numa gaiola, não é? Porque será, hein?
Tinha resolvido deixar-se embarcar a ver até onde é que aquilo ia.
- Não sei explicar. Disse o outro muito sério. Talvez porque, para além de comerem outros animais, o sofrimento que lhes infligem os alimente também... ou lhes sirva para qualquer outra coisa, não sei. Não tem explicação.
E ficaram por alguns momentos pensativos. Mas o assunto não estava esgotado.
- Eles até constróem umas gaiolas onde se prendem também uns aos outros! ...são um perigo, esses tais humanos!
- Não deve ser então tarefa fácil andar à procura por esses campos de alguém que tenha comido medronhos a mais, e depois ficar ali à espera que os vomite... Com o amor que eles nos têm, se nos aproximamos muito estamos fritos.
- Literalmente. É mesmo um dos petiscos que eles mais apreciam, passarinhos fritos.
Aí, o outro teve um arrepio.
- Qual é então a melhor maneira de se conseguirem esses tais ?medronhos com tratamento?, não haverá outra forma? Perguntou com o ar mais sério que conseguiu.
- Há mais seres que gostam deste fruto, menos falsos que os humanos e dos quais nos podemos aproximar facilmente. Mas esses, de um modo geral são mais sensatos e, quando percebem que algo lhes vai fazer mal, sabem parar a tempo. Eu avisei-te que é preciso arriscar a vida. Mas cada um é livre de usar os processos que achar mais seguros e mais eficientes. O resultado só depende do teu engenho e da tua habilidade. Desejo-te boa sorte!
E bateu as asas e voou. Foi-se embora sem dizer mais nada.
A conversa terminara sem despedidas, unicamente com aquele ?boa sorte? e, ala. Teria o outro percebido que ele já não estava a acreditar em nada? Mas como? Se ele não tinha dito nada que fizesse supor isso...até continuou a responder normalmente, apesar de ter achado tudo aquilo um nojo.
Deixou-se estar entretido junto ao ribeiro onde havia umas bagasinhas muito gostosas, que já não comia há muito tempo. E enquanto ia petiscando e saltitando, lembrou-se dos tais ditos poderes de que o outro falava, conseguidos pelo efeito de qualquer coisa que se comeu. Seria isso? Já antes, por várias vezes lhe parecera que ele lhe adivinhava os pensamentos, mas sempre deixou passar como coincidências. O que é certo, é que a conversa do outro pareceu esfriar a partir de um certo ponto, e acabou por terminar daquela forma abrupta. Era estranho... Se de facto era possível o outro seguir os seus pensamentos, claro que percebeu que já não estava a acreditar em nada, e portanto, para quê gastar mais conversa e perder mais tempo? Tinha lógica. Seria isso? Já não sabia no que acreditar, estava confuso, e preocupado também. Agora achava que devia ter falado e dito imediatamente que já não ia naquela história, que não estava a acreditar nele. Fingir que seguia tudo com muita atenção, e fazer até algumas observações, foi uma falsidade que se calhar o outro percebeu. Se isso era verdade, tinha razão para ficar ofendido. Não sabia o que pensar. É verdade que tinha ficado enojado com a novidade daqueles procedimentos, mas em vez de tentar esconder isso, devia ter falado logo em vez de pensar que o outro o estava a querer enganar. Achou que estava a adivinhar o pensamento do outro quando afinal, parece que se tinha passado o contrário. Tinha julgado na cabeça do outro um pensamento que afinal era seu. Isto era tipicamente um raciocínio human...
Sente de repente uma espécie de choque eléctrico que o sacode todo e acorda num sobressalto, sem saber onde, nem desde quando ali está.
E o ribeiro? E as pedras?
Tenta localizar-se e recupera lentamente. Pelo altura do sol percebe que o dia avançou bastante, e ouve-se ao longe o piar de um passarinho a pontuar o silêncio. Sente a cabeça estalar, o corpo dorido e aquele sabor agora azedo na boca. Tudo o que podia desanimar um homem. Mas tem outro sobressalto que o faz definitivamente acordar. Não, não fora um pesadelo que tivera, queria encontrar um nome e não encontrava. Tentava lembrar-se do sonho em que de novo voava, e parecia-lhe uma história incrível, que transposta para aquela realidade que agora o envolvia, se esfumava como uma nuvem. Ainda faz um esforço mas, em vão. Resolve deixar para depois, fica-lhe apenas a sensação que tinha sido uma coisa mágica. Talvez viesse a lembrar-se mais tarde, agora não era capaz.
Soergueu-se entretanto, ficando sentado com as pernas estendidas a ganhar coragem. Olhava para as botas à sua frente e, um pouco mais abaixo, lá estava no chão aquela mancha rosada de restos de fruta que, para além da repulsa, também lhe provocava um certo embaraço. Vergonha mesmo. Aquela imagem e sobretudo aquela recordação fizeram-no levantar-se como pôde e tentar retomar o caminho rapidamente. A tarde já ia avançada, e se não encontrasse nenhum abrigo até ao anoitecer, teria pela frente mais uma longa caminhada nocturna, para a qual não se sentia com ânimo nenhum. Pegou no saco que tinha ficado abandonado no chão e pô-lo ao ombro, retomando a marcha.
Trazia os bolsos cheios de fruta e pensou deitar aquilo tudo fora, enojado, mas não o fez. Olhou uma última vez para trás, para o sítio onde tinha estado, e pareceu-lhe ver por um instante um passaroco a esvoaçar em volta. Mas não tinha a certeza, foi um coisa fugidia, nem deu para ver bem, podia perfeitamente ser impressão sua, ou alguma erva que abanava com o vento.
Levou algum tempo a recuperar o ritmo da marcha, e à parte um resto da má disposição no estômago que passaria com o tempo, estava quase esquecido aquele episódio. Não queria pensar mais nisso, podia ser que mais tarde, se se lembrasse da história, ainda viesse a achar-lhe graça. Ou então que era uma coisa mais séria, mete aqui o narrador o bedelho, uma vez sem exemplo.
A urgência da notícia queimava-o, e acelerava-lhe o voo.
Sobre aqueles campos isolados, um pardal solitário procura o caminho de regresso ao sítio onde naquela manhã tinha abandonado o bando para se lançar finalmente sozinho na grande aventura da sua vida.
Ele sabia onde encontrar os medronhos. Desde aquela primeira vez que sabia que lá voltaria. O fascínio do perigo, o desafio, o segredo, tudo isso o trazia inquieto há vários dias. E agora aquela urgência de partilha, e o estado de exaltação provocado pelos pequenos pedaços que se atreveu a debicar e que o faziam sentir-se o dono do mundo e tudo entender numa visão cósmica até então desconhecida. Seria este o prémio da vitória?
Quando iniciou o regresso, encontrar o bando pareceu-lhe mais fácil do que lhe parece agora. Será que foi nesta direcção que veio? Entretanto perdera a noção do tempo. A descoberta de novas sensações, o voo, os sons do vento, o domínio do corpo e das asas, tudo isso era novo e fascinante, mas quando se apercebeu, pareceu-lhe que o tempo tinha parado. Há uns segundos ou há muito tempo? Não sabia dizer. Só pensou nisso quando sentiu os primeiros sinais de cansaço, e no horizonte não se avistavam ainda sinais dos companheiros. Perder-se seria fatal. Tenta voar mais calmamente, prestar melhor atenção ao mundo à sua volta e revê com detalhe todo aquele dia, que foi intenso de experiências e de esforço. Desde a madrugada, quando avistou o homem solitário caminhando, o ter-lhe seguido os passos, a espera enquanto o via dormir, e a intrigante percepção dos seus sonhos agitados. E depois subitamente aquele rasgo, que não percebeu de onde veio. Aquele pedacinho de água tão reconfortante como inesperado ali tão perto dele! E quem poderá dizer se foi ele que empurrou as circunstâncias, ou se foram estas que o levaram a agir? Os medronhos estavam só à distancia de um pulinho, e quando se aventura a beberricar a água, tão perigosamente perto de um ser humano como nunca tinha estado, já levava no bico o fruto da tentação. Bebeu a água em silêncio, surpreendido ele próprio com o seu gesto, e afastou-se rapidamente num estado de grande excitação. E agora?
Lembrava-se de o mestre lhe ter dito que tinha de vencer o medo e usar a inteligência. Vencer o medo, talvez tenha sido um pouco irreflectido. E quanto ao uso da inteligência, o que era isso? Agira um pouco como um robot comandado por um outro dentro dele. Ou seria fora dele? Foi esvoaçando ali em volta, espiando o homem e pressentindo no caminho os seus desejos. Quando este finalmente encontra o medronheiro e mergulha naquela sofreguidão, ele hesita entre regressar imediatamente a avisar os outros ou esperar para ver o resultado. Tinha conseguido! Tinha vencido uma primeira etapa, o primeiro grande teste, e resolveu esperar e ficar para ver...
As primeiras a chegar foram as formigas, que não perdiam tempo, e já se afadigavam em ordeiras filas, num vai vem incessante, carregando pequenos pedacinhos que arrastavam para as profundezas da terra. Já cirandavam também embebedados pelo cheiro, alguns insectos procurando um poiso de onde pudessem regalar-se. Ele pousou a alguma distancia e foi-se aproximando em pequenos saltinhos, enquanto observava aquela festança que apenas começava. Quando resolve debicar naquela pasta, finalmente vencida a relutância inicial, não consegue desfrutar inteiramente. Sente-se só e repara que as formigas, todas e cada uma delas, são um organismo uno, e lembra-se do que o outro lhe dissera, qualquer coisa sobre partilha, e em benefício do grupo. Pensa neles e sente que, nesse instante, eles também estarão a pensar nele. Há qualquer coisa estranha ali que o faz decidir regressar rapidamente. Mas já não é o mesmo que regressa. Nota isso logo ao elevar-se do chão, bastou um pequeno impulso e parece não ter peso, sustenta-se no ar com uma sensação nova, tem os sentidos tão alterados que os mais pequenos detalhes da natureza à volta o surpreendem. A ponto de ver o homem, que se encontra novamente caído no chão, e pensar que consegue voar-lhe nos sonhos. Mas agora só quer voltar rapidamente e avisar os outros. Como é possível guardar um segredo destes sozinho? O que irão pensar dele se o não partilhar?
O sol vai baixando lentamente lá para trás, e sempre na mesma cadência, o homem já leva várias horas de caminho. Tem o olhar preso na sombra que se alonga lentamente à sua frente. Tem piada! Vou andando e parece que vou crescendo... Vai pensando alto enquanto segue a sua sombra nos relevos do terreno. E se eu saltasse e de repente ela fugisse? A sombra só não foge porque a trago presa aos pés. Sou eu que a prendo, ora com um, ora com outro, ora com os dois ao mesmo tempo. Tenta um salto mas desiste, está cansado. Mas se eu voasse ela fugia, se calhar. Seguir-me-ia de longe como um cão que segue o dono, e eu lá de cima a vê-la pequenina cá embaixo, a minha sombra...olha ela ali! E conforme vai falando, delirante, vão-lhe surgindo imagens do seu sonho, enquanto voa. E ouve aquele passarinho que falava e que dizia, vais correr riscos e só te tens a ti, cuidado com os humanos, são manhosos. E nisto tropeça numa pedra, e cai desamparado. Fica estendido no chão, aturdido. Até que, lentamente, vai recuperando e se levanta.
- Ainda te matas, pá! Fala alto para si próprio, a querer espantar sonho que o alucina. Olha pró caminho e acorda, porra, estão ali aqueles montes, estás a ver? É para ali que tu tens que ir, só mais um esforço, vá lá, não te deixes ir abaixo.
Avança agora em direcção aos montes, e o terreno vai subindo lentamente. Há qualquer coisa que o impele, talvez a presença do mar que pressente pelo cheiro no ar. Para sul, há uma mancha verde de arvoredo mais denso que parece escorrer encosta abaixo. Deve haver ali água, talvez uma nascente. Precisa encontrar água rapidamente, já lhe resta muito pouca da que trouxe. Em breve irá parar e procurar também no saco o que lhe resta para comer.
O trilho sobe em direcção ao arvoredo. A luz do fim do dia vai caindo, as sombras vão-se esvaindo compridas e ele vira-se uma última vez para ver o sol que se esconde nesse instante. Daqui a nada é noite... E quando volta a olhar o arvoredo em frente, a surpresa não podia ser maior. Muito ténue, um fiozinho de fumo surge subindo por entre as árvores lá ao fundo. Bate-lhe o coração mais depressa, aquilo é um sinal de vida, pensou. Quer dizer, um sinal de presença humana, só pode ser gente. Há com certeza ali gente, e avança mais animado na perspectiva de encontrar alguém, possivelmente uma casa, um abrigo...
Há um cão que ladra, e o som vem daquela direcção. O terreno sobe cada vez mais acentuadamente e ele já percebeu que, alguém que ali esteja, se não o viu já, agora que o cão ladrou já está avisado de que vem ali gente. É quase noite, e o cão agora não se cala. Ele receia que anoiteça e acelera um pouco o passo, embrenhando-se cada vez mais no arvoredo, tentando vislumbrar o fumo entre as árvores, como um farol. Quando finalmente avista o que parece ser uma palhota, vê ao lado o cão que ladra e de repente, quase tropeça num homem que está sentado numa pedra à sua frente. Tranquilo, dir-se-ia à sua espera. É um negro de idade indefinível, de barba e cabelos desgrenhados e que parece sorrir da sua surpresa.
- Vi o fumo e calculei que devia haver gente aqui. Disse, um pouco sem jeito, tentando disfarçar o susto e recuperar o fôlego.
O cheiro a fumo da fogueira no ar e o cão, esquelético, agora de mansinho a rondar-lhe as pernas, cheirando a medo. Mais tarde o negro dir-lhe-ia como achou bizarra a presença de um branco por ali. Há já muito tempo que tinha partido o último. Alguns ainda aguentaram os primeiros anos da guerra, mas aos poucos, um a um, mortos ou fugidos, nem um ficou. Já mal se via o que restava das casas que tinham construído, cobertas pelo mato e ruídas pelo tempo, até uma velha estrada que passara ali perto, por falta de uso, tinha desaparecido. Andaria ele à procura de alguma memória antiga, de algum lugar de infância? Mas quis respeitar o seu silêncio, e deixou-o a recuperar as forças e apaziguar o espírito. Se lhe quisesse contar de onde vinha e ao que vinha, era com ele.
Nessa tarde, muito antes do cão ter ladrado já ele se tinha apercebido lá longe da presença daquele homem caminhando. Quando acendeu o fogo, ainda hesitou em faze-lo, tinha a certeza que o fumo o atrairia até ali, mas resolveu fazer uma trégua com o mundo. Há quanto tempo não partilhava um jantar?
No terreiro frente à casa, uma pequena fogueira no chão ilumina com uma luz amarelada e trémula uma mesa tosca feita de troncos e tábuas, e ao lado, entre duas árvores, uma rede estendida. O cão continua a farejar curioso o recém chegado e o dono enxota-o com o pé enquanto tira do fogo uma panela fumegante e enegrecida pelo fumo, que coloca sobre a mesa. Senta-se e com um sorriso convida o outro para que se sente também. Dividiram a comida da panela e comeram em silêncio.
Confundindo-se com o fumo da fogueira, pairava em volta uma subtil e indefinível nuvem de mistério.
O negro falar-lhe-ia também da escola onde o seu pai um dia o deixou, miúdo, quando foi trabalhar para longe, para as minas, e do primeiro branco que viu. No caso, uma mulher. Tinha-se aventurado naquele desterro longínquo como professora, e ele a princípio estranhou muito a cor da sua pele, fazia lembrar cadáver, dizia, como aqueles que tinha visto uma vez a boiarem no rio. Fez-lhe muita impressão. Mas depois conheceu-lhe o sorriso, e o cheiro, ambos tão doces, e achou que cheirava a flores. Anos mais tarde viria a reencontrar esse cheiro e a saber que tinha um nome, e que vinha de uma planta que ele não conhecia. Era alfazema. Nunca mais deixou de sentir esse cheiro sempre que se lembrava dela, a sua primeira professora. Essa recordação vivia com ele desde aquela primeira vez em que ela o envolveu nos seus braços e o reconfortou num momento difícil. Nessa altura já se tinha esquecido que tinha cor de cadáver, e até achava graça porque quando ela se zangava, o que às vezes acontecia, ou quando se ria muito, mudava de cor, passando do branco ao cor de rosa, chegando quase ao vermelho. Os outros miúdos até diziam que ela tinha sangue de camaleão, coitadinha...
Depois de todos estes anos, lembrava-se agora de quando ela chegava ao seu lado e lhe dizia quase ao ouvido: Hossi, tens que escrever direitinho sobre as linhas. E lhe pegava na mão com carinho e o ajudava a escrever as letras mais difíceis.
Depois de terem comido, deixaram-se estar sentados em silêncio, ouvindo os sons da noite no mato e o crepitar do fogo ali ao lado. Esse silêncio avivava detalhes que provavelmente em contactos mais ruidosos lhes escapariam. Um pequeno gesto, um sorriso, um franzir de sobrancelha tomavam ali uma dimensão nova. Talvez noutra circunstancia houvesse ocasião para muitas perguntas e muitas explicações, mas ali não pareciam necessárias. O que não evitava uma ligeira inquietação no espírito de Hossi. Aquele branco que lhe apareceu ali meio perdido, vinha fugido, ou iria em busca de algo? Perguntava-se se algumas pessoas não andariam às voltas na vida, sem saberem se estão a perseguir uma ideia ou a serem perseguidas por ela. Mas absteve-se de qualquer observação. O outro, entretanto, parecia ouvir essa interrogação e essa dúvida dentro si. Mas naquele momento não era capaz de responder, sentia-se apenas reconhecido por aquele acolhimento. Foi bom ter vindo até ali e encontrarem-se, era a única coisa que poderia ter dito. E Hossi deve ter percebido. Levantou-se e fez-lhe sinal que era hora de irem dormir. Mostrou-lhe uma esteira enrolada junto à parede e indicou-lhe a um canto da casa o sítio onde poderia estende-la. Dos restos da fogueira tirou dois pequenos troncos ainda acesos e trouxe-os para dentro, deixando-os no chão junto à porta, para afastar o frio e os mosquitos, e deitou-se no outro canto.
Teve dificuldade em adormecer. Aquela visita inesperada acordara-lhe memórias antigas. Lembrava-se da escola, onde aprendeu a falar e depois a ler e a escrever em Português. E da professora, que ao mesmo tempo que ensinava aos alunos a sua língua, ia aprendendo a deles com eles. Na altura não ligou a esse pormenor, só muito mais tarde, já adulto, percebeu como isso era raro e pouco valorizado entre a população branca. Mais tarde, já homem, quando se lembrou de a ir procurar, soube com tristeza que se tinha ido embora. Uma denúncia de um chefe de posto, e mandaram-na embora juntamente com uns padres holandeses de uma Missão protestante. Andavam a estudar a fonética das línguas indígenas e a tentar criar e organizar uma escrita para elas. Com gramática, dicionários e tudo. Inventou-se uma história qualquer de incentivo à sublevação e foi o suficiente. Ficou a saber que afinal havia ainda mais injustiças, para além daquelas que ele próprio sentia na pele.
Acordou de madrugada surpreendido com um fenómeno que já tinha pressentido na véspera, pouco antes de adormecer. É que estava de novo a pensar em português!
Durante todo o tempo que ali viveu isolado, unicamente em contacto com a natureza, voltara à sua língua materna para pensar e organizar o mundo à sua volta. Era-lhe suficiente. Mas agora, com aquela presença, reencontrava uma linguagem e uma forma de pensar que julgava esquecida. Subitamente o mundo mudava de tamanho. Tantas coisas, tantas ideias lhe ocorriam agora e que pareciam desaparecidas, simplesmente por não serem verbalizadas.
Viera para ali viver depois que terminaram as guerras, não que houvesse algum motivo especial, apenas estava cansado de tantos anos de barbaridades e injustiças. Primeiro tinham-lhe dito que tudo era culpa dos brancos, e os brancos foram-se embora. Depois que era culpa da guerra... e foram muitos anos de guerra. E quando a guerra acabou, resolveu voltar à sua terra de origem e traçar sozinho o seu destino. Conhecia bem aquele sítio e achou que era um bom lugar. Tinha andado por ali em criança acompanhando o pai na caça, e nunca mais se esqueceu daquela nascente que brotava ali perto, rodeada de árvores e onde muitos animais vinham beber de madrugada. Há muito tempo que não tinha a companhia de um ser humano e às vezes dava por si a falar com o cão, outras vezes com os pássaros que costumavam esvoaçar por ali. Quando aceitou os medronhos que o outro lhe ofereceu à chegada, achou aquilo uma curiosa coincidência. Por várias vezes, quando se levantava cedo...
Os primeiros raios de sol já lhe aquecem a cara e lhe queimam os olhos. Abranda um pouco o passo e respira mais calmamente. O que o faz parar, enfim, é o chilrear dos passarinhos. Há quanto tempo os não ouvia? Já não se lembra. Está menos frio agora e procura um sítio onde sentar-se e descalçar as botas. Quer descansar as pernas e dormir. As últimas horas de caminho fê-las como um sonâmbulo - três passos inspira, três passos expira. O trilho que seguia, de ter sido em tempos muito usado, ainda lá estava, ainda se via, e foi isso que o ajudou durante a noite, evitando andar às voltas sem sentido. Afastou-se um pouco do caminho, arrancou umas braçadas de erva, improvisou uma cama, descalçou-se e deitou-se. Fez do saco que trazia o travesseiro, pôs o chapéu sobre os olhos, e pouco depois adormecia.
Deste homem, saberemos a origem quando ele dela nos quiser dar conta. Do seu destino, nem mesmo o narrador o sabe. Deixará que seja o próprio a decidi-lo.
A paisagem aqui é quase agreste, a vegetação escassa e rasteira permite vislumbrar o horizonte todo em volta. Alguns tufos de arvoredo dispersos aqui e além, e sobretudo muita pedra. Ao longe, para nascente, umas montanhas.
Parecia estranho, mas diria que voava. Depois de vencido o medo, podia deixar o solo e elevar-se no ar, não sentir mais o peso e voar. E agora lá do alto, toda aquela visão do mundo... Tudo o que via era novo e nada reconhecia que lhe pudesse dizer onde estava. Sozinho, só com a surpresa do voo, procurava lá em baixo um caminho, qualquer coisa que reconhecesse, que conseguisse identificar, quando de repente se viu a si próprio naquela madrugada no carreiro que seguia quando.... Uma súbita vertigem e logo a aflição da queda. Num segundo debate-se sem perceber o que lhe está a acontecer, estou a cair! estou a cair! Grita e agita-se quando de repente...
Acorda. Aflito e a transpirar, afasta o chapéu da cara, mas não consegue abrir logo os olhos devido à súbita claridade. Quanto tempo terá dormido? Nesse preciso momento, um passarinho acabava de pousar num arbusto ali muito perto dele, e olhava-o curioso. O ramo ainda abanava, e é isso que lhe prende a atenção enquanto vai entreabrindo os olhos, adaptando-os à luz. Ele e o pássaro olham-se com a mesma estranheza e a mesma curiosidade.
?Eu estava a voar quando acordei!? lembrava-se. Já tinha tido sonhos estranhos outras vezes, mas esquecia-se deles quase logo, e a maioria das vezes, ao acordar, não os conseguia relacionar com a realidade. Mas agora tinha ali por cima da cabeça aquele passarinho a olhar para ele, e a coincidência de se encontrarem ali naquele instante, ele vindo de um sonho em que voava, e um pássaro, talvez vindo dum voo em que sonhava...
Estaria a delirar? Adormecera exposto ao sol, e agora com certeza delirava. Arrastou-se um pouco, para abrigar a cabeça à sombra, fechou os olhos e tentou reconstituir o sonho. Mas do que se lembrava, era que o sonho tinha abruptamente terminado no preciso instante em que tocou a realidade. Como uma bola de sabão que se desfaz quando a tocamos. Dois mundos que não podiam existir em simultâneo, pensou. Seriam os pontos em que se tocam, passagens para outras dimensões? Tentou por algum tempo ainda manter-se naquela fronteira entre o sonho e a vigília mas, sentia a boca seca e na barriga aquele aperto da fome que não lhe dava sossego. Tinha caminhado toda a noite e todo o dia anterior, e só tinha parado para beber água quando atravessou um ribeiro, já muito lá para trás. Aí, tinha aproveitado para descansar um pouco e encher uma garrafa que trazia no saco. Virou-se à procura da garrafa, e olhou para cima. O pássaro ainda lá estava, no mesmo sítio, agora entretido a coçar as penas com o bico, e assim que o viu mexer-se, ficou de novo atento aos seus movimentos. Ele desrolhou a garrafa e, antes de leva-la à boca, encheu primeiro a tampinha, à laia de copo, e esticou o braço colocando o pequeno bebedouro ao seu lado, o mais afastado que pôde, a convidar o passarinho a beber também. E bebeu a água que restava na garrafa. O passarinho não se mexia no seu poleiro e tinha o olhar fixo naquele minúsculo espelho de água que brilhava lá em baixo. Seria uma armadilha para o atrair ao pé do homem? Não, os animais não pensam assim, isso é uma característica humana. Virou-se de lado e tapou a cara com o chapéu, deixando por baixo uma pequena nesga por onde podia ver a tampinha à sua frente à distancia de um braço estendido.
Fruto de uma longuíssima experiência acumulada, a desconfiança dos pássaros possibilitou-lhes uma existência tão antiga como a dos dinossauros. O facto de voarem
permitiu-lhes até sobreviverem ao Dilúvio. Se pudesse escolher um outro animal para reencarnar, seria um pássaro, pensou. Não iria fazer mal àquele. Tinha feito apenas uma tentativa de aproximação amigável, uma pequena oferta em troca de uns momentos de companhia. Será que o animal entendia? Bastava que ele vencesse o medo e descesse até ali para matar a sede, ficaria contente. Prometia deixar-se ficar completamente imóvel, para não o assustar, e mostrar-lhe que podia confiar num ser humano. Pelo menos naquele ser humano.
Abriu os olhos e percebeu que tinha novamente adormecido. Por uns instantes talvez... E reparou com espanto que a água tinha desaparecido, o pássaro devia ter pousado ali enquanto ele dormia, e bebeu-a sem que ele desse por isso. Mas o que era verdadeiramente surpreendente, é que mesmo ao lado da tampinha da garrafa, estava um pequenino fruto vermelho alaranjado, pouco maior que uma cereja. Ergueu-se e olhou em volta, a ver se havia sinais do pássaro, mas não, nem sinais. Pegou no fruto e examinou-o com cuidado, tinha apenas uma pequeno golpe que deve ter sido feito com o bico, ao traze-lo. Era um fruto muito bonito, com uma pele sarapintada de pequenas grainhas brancas. Dir-se-ia um morango, não fosse ser tão redondinho. Hesitou em mete-lo à boca. Cheirou-o primeiro e depois tocou com a ponta da língua no sítio que tinha sido ferido pelo pássaro e achou que era doce, devia ser comestível, portanto. Já não comia nada há bastante tempo, e isso avivava-lhe os sentidos. Era realmente muito doce. Seria venenoso? A natureza é sábia, e pôs nas coisas venenosas sabores normalmente pouco convidativos. Com este raciocínio venceu a hesitação, e trincou-o. Uma metade primeiro, que saboreou lentamente, enquanto observava a outra metade com minúcia, entre dois dedos, quase em frente ao nariz. Tinha umas pequenas grainhas e era delicioso. Que fruto seria aquele? Meteu o resto na boca e levantou-se, saboreando a novidade e tentando localizar o pássaro. Em toda a volta quase não havia árvores, a vegetação era pouco mais que rasteira, unicamente uns pequenos arbustos aqui e além, no máximo da altura de um homem. Aquilo só podia ser fruto de um daqueles arbustos ali das redondezas. Resolveu retomar o caminho. Calçou as botas, amarrou o casaco pelas mangas em volta da cintura, pegou no saco e retomou o velho trilho, observando os arbustos na esperança de encontrar mais frutos.
Manteve aquele sabor na boca durante algum tempo e ia pensando no pássaro. Por onde andaria ele agora? Será que os pássaros têm memória? Se o visse será que o reconheceria? Os pássaros parecem todos iguais, dentro de cada espécie, claro. E aquele era o quê? Um pardal, talvez. Ou seria um rouxinol? Também podia ser... não, andorinha não era de certeza. Cucos, rolas, e foi enumerando mentalmente todos os tipos de aves de que se lembrava. Pardais, pombos, perdizes, codornizes... Como seria que as aves entre elas se distinguiam? como é que um pardal sabe que é um pardal? Lembrou-se que os cucos deixam os seus ovos a chocar nos ninhos de outras aves. Há coisas estranhas na natureza, até havia um filme sobre isso. Um filme...é verdade! E nisto parou. Há quanto tempo foi isso? E aonde foi? Surgiam-lhe imagens desconexas que ele não conseguia organizar e dar sentido. Uma tontura e era a guerra, as mortes e o sangue, o hospital, tudo branco, as batas brancas...e ele amarrado à cama. Uma aflição! Deu por si ali parado sem saber o que fazia, e o que fazer. Respirou fundo, uma, duas, três vezes. Já antes se tinha sentido assim, e disse para si próprio: ? Nada de pânico, nada de pânico, continua o teu caminho! E lentamente foi retomando a marcha, tentando fixar-se na respiração, sincronizando-a com as passadas. Assim era mais fácil. Andar, andar e respirar.
O gosto que lhe ficara na boca lembrou-o que tinha de se alimentar. Começava a sentir-se fraco, não iria aguentar naquele estado mais uma noite de marcha. Aquele trilho iria dar a algum lado com certeza. Mais adiante, onde o terreno subia ligeiramente à direita, havia um pequeno arvoredo. Decidiu-se e resolveu meter por entre o mato, subir naquela direcção. Foi-se aproximando e, observando os arbustos, reparou que num deles, dissimulado entre os outros, havia de facto uns frutosinhos que percebeu quase logo serem iguais ao que o pássaro lhe tinha levado. O arbusto não era grande, pouco mais alto que ele, e estava carregadinho. Arrancou um e meteu-o na boca, saboreando com gosto, calmamente. Depois comeu outro, e mais outro, já com alguma sofreguidão. Os mais avermelhados eram os mais maduros e mais doces. Não só matavam a fome, como os mais sumarentos lhe aliviavam também a sede. Ás tantas, com a boca tão atafulhada que já lhe escorria um suco pegajoso pelo queixo e pelo pescoço, resolveu parar aquela orgia, percebeu que em breve se iria fartar. Havia ainda tantos frutos, porquê aquela sofreguidão? Podia até encher os bolsos e continuar o caminho com uma reserva para o resto da viagem. E foi isso que fez, encheu os bolsos do casaco e voltou ao trilho que tinha abandonado mais a baixo. Sempre podia ir metendo a mão ao bolso quando quisesse enquanto caminhava, se lhe apetecesse comer mais. Mas de momento estava cheio, ou melhor, estava quase enjoado.
De regresso ao caminho, ainda mal tinha retomado o ritmo da marcha e já começava a sentir o estômago às voltas, agoniado. Não devia ter comido daquela maneira. Mas pensou que a qualquer momento podia meter os dedos à boca e vomitar. O pior eram as tonturas que começava a sentir, e que não queria acreditar que fossem provocadas pela fruta. Seriam os frutos venenosos? Ter-se-ia envenenado estupidamente a si próprio? Cada vez se sentia mais tonto e com a vista cada vez mais embaciada. Tentou ainda alguns passos, mas já não conseguiu. Deixou-se cair de joelhos, e vomitou copiosamente.
Um nojo, toda aquela polpa adocicada ali regurgitada à sua frente, e ele naquela posição sem glória. Parecia-lhe que vomitava quilos de fruta.
- Cabrão do pássaro, hein! Pensava alto. E ao tentar levantar-se via tudo a andar à roda. Fez um esforço para se aguentar em pé, mas em vão. Tropeçou nas próprias pernas e caiu. Deixou-se estar assim por uns momentos, deitado, tentando perceber o que se estava a passar. Seria o efeito do veneno?
Finalmente percebeu que estava bêbado. Não era uma sensação nova, mas sempre associara a bebedeira ao álcool e à bebida, e agora só tinha comido fruta. Coisa estranha aquela! Tentava ter alguma lucidez no raciocínio, mas não era fácil.
- Vou ficar aqui sossegadinho um bocadinho, à espera que isto passe. Não é a primeira vez que apanhas uma buzana, pá. Isto passa... e também já vomitaste, o que alivia bastante. Deixa-te estar, que estás bem assim. Falava alto como se tivesse companhia. E o sacana do pássaro, hein? filho da puta, um gajo ali cheio de consideração com os bichos, se calhar o bichinho tem sede, e tal... e o manhoso fodeu-me! E depois de uma pausa, continua. Mas olha que até tem graça. O sonso! Veio de mansinho, apanha-me a dormir, e deve ter percebido que um gajo estava a precisar de alimento e pimba, com a treta de me adoçar a boca...
E assim continuou deitado, de barriga para o ar olhando o céu, enquanto perorava:
- Mas olha que o sacana foi subtil. Se fosse um passaroco malandro ou mal agradecido podia-me ter cagado em cima, por exemplo. Ou pior ainda, vir-me bicar um olho, foda-se! Mas este sacana devia ter sentido de humor. Será que também há humor nos animais? Se eles brincam... E com a treta de retribuir a gentileza da água, deve ter pensado, vou dar-lhe uma coisa doce, o gajo vai gostar, vai à procura de mais e eu vou ficar aqui a ver o gajo rebentar. Bem visto... Se calhar até está para aí escondido a ver-me nesta triste figura, o cabrão.
E com a bebedeira, delirava. Virou-se de lado e tentou descansar, agora já com alguma simpatia pelo passarinho, e até com admiração pelo elaborado raciocínio que descobria no animal.
- Mas que raio de merda é que eu comi? Foi a última coisa que conseguiu dizer para si próprio uns momentos antes de adormecer novamente.
Agora voava no meio de um enorme bando de pardais do campo, e reparava que havia uns quantos que, à parte, se destacavam formando verdadeiras esquadrilhas que faziam as acrobacias mais incríveis que se podia imaginar. E eram vários os grupos de esquadrilhas que se desafiavam, fazendo loopings e descidas vertiginosas para ver quem eram os melhores. Era um mundo fascinante de desafio permanente e de liberdade.
Ele não se destacava no bando. Era um grupo muito grande que voava sobre as cearas, onde faziam grandes razias. Os outros, os kamikazes, como ele lhes chamava, voam à parte, mais alto e em bandos mais pequenos. Faziam voos muito velozes, com acrobacias fantásticas em volta dos campos, distraindo eventuais predadores. E em caso de perigo, avisavam rapidamente os companheiros que comiam calmamente lá em baixo. Eram jovens machos, normalmente. As fêmeas e os mais velhos podiam assim comer tranquilamente os seus grãosinhos de trigo ou do que fosse, e carregarem as ervas para os ninhos.
Mas os kamikazes fascinavam-no. Eram velozes e destemidos e, à parte o exercício do voo, em que eram exímios, não ligavam a mais nada. A não ser acasalar. Depois das suas enumeras façanhas, não lhes era difícil cortejar e seduzir as fêmeas.
Nunca tinha feito parte de nenhuma daquelas esquadrilhas. Por várias vezes tentou isoladamente efectuar loopings e voltas rápidas, e algumas outras manobras que já tinha observado e que lhe pareciam impossíveis de realizar. Mas corriam-se imensos riscos em voos isolados, e o maior de todos era o ficar-se muito vulnerável a qualquer predador. Ele sabia isso. A grande protecção era a presença do bando. Todos protegem todos. O bando era praticamente invulnerável. É certo que por vezes desapareciam alguns, mas o bando permanecia.
A ele fascinavam-no as proezas do voo, e pertencer a um daqueles pequenos grupos era o seu maior sonho. Ser capaz de fazer o mesmo e ser respeitado pela sua audácia. Não desistia da ideia de o conseguir um dia.
Uma manhã em que ainda estavam quase todos às voltas nos ninhos, resolveu sair sozinho e seguiu à distância um pequeno grupo de Kamikazes que costumava treinar muito cedo, aproveitando o fresco da manhã. Poisou num ramo bem alto e ficou a observar de longe. A formação da esquadrilha era perfeita. À frente vai um líder que dirige os movimentos de todos os outros e tudo o que ele fizer os outros repetem instantaneamente, não há nenhum lapso de tempo, nem uma fracção de segundo sequer. Volta à direita, agora à esquerda e para cima, muda de velocidade, desce, acelera, tudo é feito em bloco e ao mesmo tempo, como se de um só corpo se tratasse. Reparou que a posição de líder ia alternando entre todos, com uma sequência que lhe escapava. Qualquer um podia tomar a dianteira e, a partir daí, tudo dependia da capacidade inventiva do líder e da sua experiência para dirigir o grupo até aos limites da aerodinâmica. Essa alternância tem a vantagem de repartir o maior esforço por todos. Os que vão nas linhas de trás voam com muito menos esforço porque não têm que enfrentar a mesma resistência do ar. Por vezes, com muito treino, é possível voar quase sem bater as asas, aproveitando o efeito de sucção dos da frente. Era lindo de ver!
Tão absorvido estava a ver aqueles exercícios que não reparou num outro mais velho que também observava o espectáculo num ramo ali perto.
- É bonito de ver não é? só depois do outro falar é que reparou que ele ali estava. Olhou-o e concordou com a cabeça.
- Mas isto pode acabar um dia, sabes? Insistiu o mais velho. Pode ser que um dia não seja mais possível voar assim.
- Porque é que diz isso?
- Achas que só a comer grãosinhos de trigo se consegue fazer aquilo que eles fazem?
- Mas é uma questão de alimentação? Será assim um esforço tão grande?
- Não é de esforço físico que eu estou a falar, a maioria das aves só come grãos e não é por isso que deixa de voar. É de um outro estado de consciência que eu estou a falar, de outra percepção da realidade que lhes permite aquela comunicação entre eles e aquela eficiência.
- Não estou a perceber...
- Tu não és daqui pois não? e com um ligeiro bater de asas veio pousar no mesmo ramo, quase ao seu lado.
- Não sei de onde é que eu sou, só estou fascinado com aquelas acrobacias, era uma coisa que gostava de ser capaz de fazer. Porque voar sozinho e ir para onde eu quero não tem novidade nenhuma para mim.
.....
- Tem de se passar por várias provas, antes de se ser capaz de fazer aquilo.
- E que provas são essas? Perguntou curioso.
- Para começar, tens de provar que és capaz de arriscar a tua própria vida sozinho em benefício do grupo, e com a certeza de que não terás ajuda de ninguém. Só poderás contar contigo próprio, com a tua coragem e a tua inteligência.
- E se eu aceitar, o que é que tenho que fazer?
- Aos principiantes, a primeira tarefa que lhes é confiada é irem procurar alimento para aqueles que estás ali a ver. Sem essa alimentação eles não têm as capacidades que lhes permitem aquelas proezas.
- E que alimento é esse? É muito complicado, isso?
- Depende do engenho de cada um. Para uns será mais fácil, para outros mais difícil. Alguns pagam com a própria vida.
E deu um pequeno impulso, fazendo balouçar o ramo, bateu as asas e voou.
Não podia perder aquela oportunidade, pensou, precisava de saber mais. O seu sonho parecia envolto num segredo e dificilmente voltaria a estar tão perto, caso o deixasse ir-se embora. Resolveu ir atrás. Seguiu-o e reparou que o outro, provavelmente por ser mais velho e para não fazer grande esforço, aproveitava na perfeição as correntes de ar e quase não tinha que bater as asas para voar. A mais pequena brisa ascendente era por ele percebida antecipadamente. Não voava muito depressa, mas o seu voo sereno parecia um bailado. Viu que estava a ser seguido mas não alterou em nada o seu caminho, deixou que o jovem se fosse aproximando e reparou que, aos poucos, ele lhe ia imitando os movimentos. Ao fim de algum tempo, depois de já estarem a voar praticamente lado a lado, sempre a subir, aproveitando o vento quente, resolve quebrar o silêncio.
- Não há perigo em vir aqui para tão alto?
- Perigo há sempre, sabes que viver é perigoso. Respondeu o outro. Queria mostrar-te a paisagem daqui de cima. E subiram mais um pouco.
A vista dali era soberba! A Terra agora parecia um disco redondo lá em baixo, e em volta, todo o horizonte azul.
- Todos esses campos que vês, sempre nos deram de comer com fartura, nunca houve problemas de comida, podíamos ir rodando constantemente, variando a alimentação, e ninguém se importava com isso. Depois, parece que alguém descobriu a maneira de fazer fogo, mais tarde pesticidas venenos, e desde aí tudo tem vindo a mudar, é uma verdadeira praga. Às armadilhas e aos espantalhos até nos habituámos, foram muitos anos de convivência, quase que já achávamos graça. Ultimamente ouve-se falar de cereais trangénicos. Será que eles conhecem todas as consequências? As fêmeas que se alimentarem com essas plantas, podem até ficar gordinhas, mas em breve deixarão de poder ter filhos. Dentro de algumas gerações, se quiseres encontrar alguém como tu, terás de ir a um jardim zoológico, ou a alguma loja de pássaros para ver os teus irmãos fechados, muitas vezes com as asas cortadas, enfiados naquelas gaiolas horríveis que eles acham muito bonitas e decorativas, a comer alpista de manhã à noite e a gritar por socorro. E eles acham que estão a cantar! O que os vale é que morrem rapidamente. O futuro pode vir a ser sombrio...
- E o tal alimento especial de que há bocado falava?
- Já lá vamos. E continuou. Com as coisas que lá embaixo teimam em fazer, a maioria dos frutos silvestres que sempre existiram, estão aos poucos a desaparecer. Arrancam-se plantas sem sequer saber primeiro que plantas são, e para que servem. Arrasam tudo, chegam a cobrir de cimento sítios onde antes havia plantas que lhes podiam ter aliviado o reumatismo ou evitado o cancro. A fruta que eles comem é cultivada em série, campos a perder de vista, tudo igual, tudo com o mesmo sabor. Até se gabam que não têm bicho, e que não estão bicadas por nós. Pois pudera! E dos frutos silvestres que estão a desaparecer, há alguns que devido às suas propriedades raras correm riscos maiores, por ignorância ou por cobiça, já quase não se encontram nos seus lugares de origem. Vês aquelas pedras ali, junto àqueles montes lá ao fundo? Ali ainda há medronhos. O sítio é bastante difícil de encontrar para quem vai por terra, e é isso que tem ajudado à sua protecção. Só lá vai gente muito raramente, passam-se anos sem aparecer ninguém por ali.
- Então e isso é bom? perguntou o outro, cada vez mais interessado.
- Depende...
- Depende... Depende de quê? Não estou a perceber.
- Depende se esses raros caminhantes encontram medronhos ou não, e da maneira depois como os comem.
Tinham começado a descer. Havia o perigo das águias, e desciam o mais silenciosamente possível, evitando grandes movimentos que pudessem chamar a atenção sobre eles, em direcção ao tal sítio das pedras. A descida foi rápida. Depois de ter feito sinal para que o outro fosse olhando para trás também, porque as águias são muito manhosas e muitas vezes atacam de surpresa vindas de cima, o mais velho seguia à frente cortando o ar como uma flecha. Era admirável a forma como colocava as asas e a atitude do corpo para reduzir ao mínimo o atrito. Acabaram por pousar suavemente no cimo de um pequeno arbusto, depois de uma curta volta de reconhecimento. Havia no ar um perfume doce que ele não percebeu imediatamente de onde vinha, nem o que era. Ainda estava a refazer-se da rápida descida atrás do mestre ( era assim que ele começava a ver o mais velho), e a tentar identificar aquele aroma desconhecido que o envolvia.
- São medronhos. Disse o mais velho enquanto observava a paisagem toda em volta.
Só então reparou que por baixo deles, dissimulados pela folhagem, havia imensos frutos que devido ao sítio em que tinham pousado, não eram visíveis imediatamente. Deu um pequeno salto para um outro ramo mais abaixo, e aí sim, ficou mesmo em frente a um dos frutos que quase podia tocar com o bico. Sentiu-se como que hipnotizado, pela cor e pelo aroma que libertava (àquela distancia quase entontecia), e pelo tamanho também. Eram umas bolas enormes, maiores que a sua cabeça cabeça.
- Posso provar? Perguntou guloso.
- Não te aconselho. Esta fruta tem propriedades mágicas, mas não pode ser comida assim como tu queres, é altamente tóxica. Quem não sabe, e se deixar seduzir e levar pelos sentidos, não vai esperar muito tempo para se arrepender. Isto, consumido assim, pode matar. E depois de uma pausa, continuou. É raro passar gente por aqui, é preciso ter paciência... Bem, agora que já ficaste a saber o que é, vamos embora que estamos longe e já se faz tarde. E bateu as asas para iniciar o regresso.
Ele ainda hesitou, enfeitiçado que estava pela descoberta e pela terrível tentação, mas acabou por regressar também atrás do outro.
Voava com a estranha impressão que ainda voltaria ali um dia. Seguia o mestre, batendo as asas em silêncio, mas havia uma pergunta que lhe atravessava o pensamento. Se os frutos eram tóxicos, e se podiam matar quem os comesse, para que serviriam então? Porque seriam assim tão fascinantes se não poderiam ser tocados? Resolveu esperar. Já tinha percebido que o seu mestre gostava daqueles silêncios e não quis mostrar-se demasiado curioso. Quando ele achasse que era oportuno dizer alguma coisa, di-la-ia com certeza. Entretanto o outro, parecendo que lhe lia os pensamentos, fez uma viragem em direcção a um pequeno ribeiro que passava ali perto.
- Vamos descansar um pouco ali, e refrescar-nos.
Pousaram tranquilamente juntos, sobre uma pedra mesmo à beirinha da água. Depois de beberem e de sacudirem as penas, voltaram a falar.
- Ficaste curioso com os medronhos, não foi? Sabes que alguns frutos e plantas da natureza, têm poderes estranhos que é preciso perceber e saber aproveitar, ou rejeitar. Mas todos acabam sempre por ter alguma razão de ser. Uns são muito bons, e outros podem ser muito maus. Se seguir-mos às cegas os nossos apetites, sem pensar e sem aproveitar o conhecimento que outros antes de nós adquiriram, podemos dar-nos mal. No caso dos medronhos, há animais que os podem comer e não lhes faz mal, se não abusarem. Têm os estômagos diferentes dos nossos e digerem-nos de forma diferente. Mas se os comerem em grande quantidade, acabam por rejeitá-los. Acontece muito a quem não sabe, acabam por vomitar aquilo que não foi absorvido. Fez uma pequena pausa, e depois acrescentou:
- E aí entramos nós...
O outro, que seguia muito atento a explicação, a tentar perceber, não percebeu.
- Entramos nós como?
- Entramos nós, porque assim já podemos comer os medronhos. Falava tranquilamente, como se da coisa mais natural do mundo se tratasse. Os frutos rejeitados dessa forma, sofreram, por acção daquele estômago, uma transformação que lhes eliminou as toxinas que nos fazem mal a nós, o que permite que já os possamos comer sem perigo. Estou a ser claro?
Ele estava sem palavras, nem conseguia olhá-lo de frente. Tentava controlar a sensação de agonia que lhe tinha surgido subitamente. Ele devia estar a brincar! Comer a fruta que tinha sido acabada de vomitar?
- Sim, claro! Foi a única coisa que conseguiu dizer, continuando a olhar para o outro lado, enojado. E que tal são os medronhos depois de serem assim... rejeitados? Ainda conseguiu perguntar, disfarçando o ar de nojo e tentando fazer crer que achava tudo aquilo normal.
- É um verdadeiro manjar dos príncipes! Disse o outro. É altamente energético, e desperta capacidades extra-sensoriais fora do comum. São essas qualidades que tornam alguns de nós capazes de executar aquelas proezas que tens visto. Claro que perdem parte do açúcar, mas continuam a ser saborosos.
Ele não queria acreditar no que ouvia! O mestre afinal estava a revelar-se o grande mestre do embuste. Devia ter logo percebido quando o outro lhe perguntou se não era de cá... Deve ter começado logo aí a preparar a história. E esteve quase para se virar e perguntar:
- Olhe lá, mestre. Os tais ditos sobrenaturais não serão antes gambuzinos disfarçados de pardal? Mas resolveu que não, já agora iria ouvir o resto da história até ao fim. Aquilo só podia ser uma grande partida.
- Pelo que estou a perceber, para se ser iniciado, a primeira tarefa será então ir procurar medronhos acabados de ser vomitados. É isso?
O mestre abanou a cabeça, afirmativo.
- E como deves saber, nestas regiões já não há chipamzés, animais muito pacíficos e grandes apreciadores de medronhos. Eram muito nossos amigos. Mas há muito tempo que foram para outras paragens, só cá ficaram uns outros macacos muito menos espertos e que entretanto mudaram de nome, agora chamam-se humanos. Mas não mudaram muito os seus comportamentos. Andam todos tapados, muitas vezes nem se consegue distinguir os machos das fêmeas, e são muito manhosos. Também são grandes apreciadores de medronhos, e quando não os comem, dão-lhes um tratamento que os transforma numa bebida que eles apreciam muito, chegam mesmo a ficar de cabeça perdida. E, com um ar meio resignado, concluiu. São estes agora o que nos resta para tratar os nossos medronhos.
Era preciso uma grande lata! E continuava com aquela história, como se ele não tivesse já percebido que aquilo era tudo uma grande aldrabice.
- Mas, segundo ouvi dizer, arriscou o jovem pardal, esses tais ditos humanos, quando apanham algum de nós, enfiam-no logo numa gaiola, não é? Porque será, hein?
Tinha resolvido deixar-se embarcar a ver até onde é que aquilo ia.
- Não sei explicar. Disse o outro muito sério. Talvez porque, para além de comerem outros animais, o sofrimento que lhes infligem os alimente também... ou lhes sirva para qualquer outra coisa, não sei. Não tem explicação.
E ficaram por alguns momentos pensativos. Mas o assunto não estava esgotado.
- Eles até constróem umas gaiolas onde se prendem também uns aos outros! ...são um perigo, esses tais humanos!
- Não deve ser então tarefa fácil andar à procura por esses campos de alguém que tenha comido medronhos a mais, e depois ficar ali à espera que os vomite... Com o amor que eles nos têm, se nos aproximamos muito estamos fritos.
- Literalmente. É mesmo um dos petiscos que eles mais apreciam, passarinhos fritos.
Aí, o outro teve um arrepio.
- Qual é então a melhor maneira de se conseguirem esses tais ?medronhos com tratamento?, não haverá outra forma? Perguntou com o ar mais sério que conseguiu.
- Há mais seres que gostam deste fruto, menos falsos que os humanos e dos quais nos podemos aproximar facilmente. Mas esses, de um modo geral são mais sensatos e, quando percebem que algo lhes vai fazer mal, sabem parar a tempo. Eu avisei-te que é preciso arriscar a vida. Mas cada um é livre de usar os processos que achar mais seguros e mais eficientes. O resultado só depende do teu engenho e da tua habilidade. Desejo-te boa sorte!
E bateu as asas e voou. Foi-se embora sem dizer mais nada.
A conversa terminara sem despedidas, unicamente com aquele ?boa sorte? e, ala. Teria o outro percebido que ele já não estava a acreditar em nada? Mas como? Se ele não tinha dito nada que fizesse supor isso...até continuou a responder normalmente, apesar de ter achado tudo aquilo um nojo.
Deixou-se estar entretido junto ao ribeiro onde havia umas bagasinhas muito gostosas, que já não comia há muito tempo. E enquanto ia petiscando e saltitando, lembrou-se dos tais ditos poderes de que o outro falava, conseguidos pelo efeito de qualquer coisa que se comeu. Seria isso? Já antes, por várias vezes lhe parecera que ele lhe adivinhava os pensamentos, mas sempre deixou passar como coincidências. O que é certo, é que a conversa do outro pareceu esfriar a partir de um certo ponto, e acabou por terminar daquela forma abrupta. Era estranho... Se de facto era possível o outro seguir os seus pensamentos, claro que percebeu que já não estava a acreditar em nada, e portanto, para quê gastar mais conversa e perder mais tempo? Tinha lógica. Seria isso? Já não sabia no que acreditar, estava confuso, e preocupado também. Agora achava que devia ter falado e dito imediatamente que já não ia naquela história, que não estava a acreditar nele. Fingir que seguia tudo com muita atenção, e fazer até algumas observações, foi uma falsidade que se calhar o outro percebeu. Se isso era verdade, tinha razão para ficar ofendido. Não sabia o que pensar. É verdade que tinha ficado enojado com a novidade daqueles procedimentos, mas em vez de tentar esconder isso, devia ter falado logo em vez de pensar que o outro o estava a querer enganar. Achou que estava a adivinhar o pensamento do outro quando afinal, parece que se tinha passado o contrário. Tinha julgado na cabeça do outro um pensamento que afinal era seu. Isto era tipicamente um raciocínio human...
Sente de repente uma espécie de choque eléctrico que o sacode todo e acorda num sobressalto, sem saber onde, nem desde quando ali está.
E o ribeiro? E as pedras?
Tenta localizar-se e recupera lentamente. Pelo altura do sol percebe que o dia avançou bastante, e ouve-se ao longe o piar de um passarinho a pontuar o silêncio. Sente a cabeça estalar, o corpo dorido e aquele sabor agora azedo na boca. Tudo o que podia desanimar um homem. Mas tem outro sobressalto que o faz definitivamente acordar. Não, não fora um pesadelo que tivera, queria encontrar um nome e não encontrava. Tentava lembrar-se do sonho em que de novo voava, e parecia-lhe uma história incrível, que transposta para aquela realidade que agora o envolvia, se esfumava como uma nuvem. Ainda faz um esforço mas, em vão. Resolve deixar para depois, fica-lhe apenas a sensação que tinha sido uma coisa mágica. Talvez viesse a lembrar-se mais tarde, agora não era capaz.
Soergueu-se entretanto, ficando sentado com as pernas estendidas a ganhar coragem. Olhava para as botas à sua frente e, um pouco mais abaixo, lá estava no chão aquela mancha rosada de restos de fruta que, para além da repulsa, também lhe provocava um certo embaraço. Vergonha mesmo. Aquela imagem e sobretudo aquela recordação fizeram-no levantar-se como pôde e tentar retomar o caminho rapidamente. A tarde já ia avançada, e se não encontrasse nenhum abrigo até ao anoitecer, teria pela frente mais uma longa caminhada nocturna, para a qual não se sentia com ânimo nenhum. Pegou no saco que tinha ficado abandonado no chão e pô-lo ao ombro, retomando a marcha.
Trazia os bolsos cheios de fruta e pensou deitar aquilo tudo fora, enojado, mas não o fez. Olhou uma última vez para trás, para o sítio onde tinha estado, e pareceu-lhe ver por um instante um passaroco a esvoaçar em volta. Mas não tinha a certeza, foi um coisa fugidia, nem deu para ver bem, podia perfeitamente ser impressão sua, ou alguma erva que abanava com o vento.
Levou algum tempo a recuperar o ritmo da marcha, e à parte um resto da má disposição no estômago que passaria com o tempo, estava quase esquecido aquele episódio. Não queria pensar mais nisso, podia ser que mais tarde, se se lembrasse da história, ainda viesse a achar-lhe graça. Ou então que era uma coisa mais séria, mete aqui o narrador o bedelho, uma vez sem exemplo.
A urgência da notícia queimava-o, e acelerava-lhe o voo.
Sobre aqueles campos isolados, um pardal solitário procura o caminho de regresso ao sítio onde naquela manhã tinha abandonado o bando para se lançar finalmente sozinho na grande aventura da sua vida.
Ele sabia onde encontrar os medronhos. Desde aquela primeira vez que sabia que lá voltaria. O fascínio do perigo, o desafio, o segredo, tudo isso o trazia inquieto há vários dias. E agora aquela urgência de partilha, e o estado de exaltação provocado pelos pequenos pedaços que se atreveu a debicar e que o faziam sentir-se o dono do mundo e tudo entender numa visão cósmica até então desconhecida. Seria este o prémio da vitória?
Quando iniciou o regresso, encontrar o bando pareceu-lhe mais fácil do que lhe parece agora. Será que foi nesta direcção que veio? Entretanto perdera a noção do tempo. A descoberta de novas sensações, o voo, os sons do vento, o domínio do corpo e das asas, tudo isso era novo e fascinante, mas quando se apercebeu, pareceu-lhe que o tempo tinha parado. Há uns segundos ou há muito tempo? Não sabia dizer. Só pensou nisso quando sentiu os primeiros sinais de cansaço, e no horizonte não se avistavam ainda sinais dos companheiros. Perder-se seria fatal. Tenta voar mais calmamente, prestar melhor atenção ao mundo à sua volta e revê com detalhe todo aquele dia, que foi intenso de experiências e de esforço. Desde a madrugada, quando avistou o homem solitário caminhando, o ter-lhe seguido os passos, a espera enquanto o via dormir, e a intrigante percepção dos seus sonhos agitados. E depois subitamente aquele rasgo, que não percebeu de onde veio. Aquele pedacinho de água tão reconfortante como inesperado ali tão perto dele! E quem poderá dizer se foi ele que empurrou as circunstâncias, ou se foram estas que o levaram a agir? Os medronhos estavam só à distancia de um pulinho, e quando se aventura a beberricar a água, tão perigosamente perto de um ser humano como nunca tinha estado, já levava no bico o fruto da tentação. Bebeu a água em silêncio, surpreendido ele próprio com o seu gesto, e afastou-se rapidamente num estado de grande excitação. E agora?
Lembrava-se de o mestre lhe ter dito que tinha de vencer o medo e usar a inteligência. Vencer o medo, talvez tenha sido um pouco irreflectido. E quanto ao uso da inteligência, o que era isso? Agira um pouco como um robot comandado por um outro dentro dele. Ou seria fora dele? Foi esvoaçando ali em volta, espiando o homem e pressentindo no caminho os seus desejos. Quando este finalmente encontra o medronheiro e mergulha naquela sofreguidão, ele hesita entre regressar imediatamente a avisar os outros ou esperar para ver o resultado. Tinha conseguido! Tinha vencido uma primeira etapa, o primeiro grande teste, e resolveu esperar e ficar para ver...
As primeiras a chegar foram as formigas, que não perdiam tempo, e já se afadigavam em ordeiras filas, num vai vem incessante, carregando pequenos pedacinhos que arrastavam para as profundezas da terra. Já cirandavam também embebedados pelo cheiro, alguns insectos procurando um poiso de onde pudessem regalar-se. Ele pousou a alguma distancia e foi-se aproximando em pequenos saltinhos, enquanto observava aquela festança que apenas começava. Quando resolve debicar naquela pasta, finalmente vencida a relutância inicial, não consegue desfrutar inteiramente. Sente-se só e repara que as formigas, todas e cada uma delas, são um organismo uno, e lembra-se do que o outro lhe dissera, qualquer coisa sobre partilha, e em benefício do grupo. Pensa neles e sente que, nesse instante, eles também estarão a pensar nele. Há qualquer coisa estranha ali que o faz decidir regressar rapidamente. Mas já não é o mesmo que regressa. Nota isso logo ao elevar-se do chão, bastou um pequeno impulso e parece não ter peso, sustenta-se no ar com uma sensação nova, tem os sentidos tão alterados que os mais pequenos detalhes da natureza à volta o surpreendem. A ponto de ver o homem, que se encontra novamente caído no chão, e pensar que consegue voar-lhe nos sonhos. Mas agora só quer voltar rapidamente e avisar os outros. Como é possível guardar um segredo destes sozinho? O que irão pensar dele se o não partilhar?
O sol vai baixando lentamente lá para trás, e sempre na mesma cadência, o homem já leva várias horas de caminho. Tem o olhar preso na sombra que se alonga lentamente à sua frente. Tem piada! Vou andando e parece que vou crescendo... Vai pensando alto enquanto segue a sua sombra nos relevos do terreno. E se eu saltasse e de repente ela fugisse? A sombra só não foge porque a trago presa aos pés. Sou eu que a prendo, ora com um, ora com outro, ora com os dois ao mesmo tempo. Tenta um salto mas desiste, está cansado. Mas se eu voasse ela fugia, se calhar. Seguir-me-ia de longe como um cão que segue o dono, e eu lá de cima a vê-la pequenina cá embaixo, a minha sombra...olha ela ali! E conforme vai falando, delirante, vão-lhe surgindo imagens do seu sonho, enquanto voa. E ouve aquele passarinho que falava e que dizia, vais correr riscos e só te tens a ti, cuidado com os humanos, são manhosos. E nisto tropeça numa pedra, e cai desamparado. Fica estendido no chão, aturdido. Até que, lentamente, vai recuperando e se levanta.
- Ainda te matas, pá! Fala alto para si próprio, a querer espantar sonho que o alucina. Olha pró caminho e acorda, porra, estão ali aqueles montes, estás a ver? É para ali que tu tens que ir, só mais um esforço, vá lá, não te deixes ir abaixo.
Avança agora em direcção aos montes, e o terreno vai subindo lentamente. Há qualquer coisa que o impele, talvez a presença do mar que pressente pelo cheiro no ar. Para sul, há uma mancha verde de arvoredo mais denso que parece escorrer encosta abaixo. Deve haver ali água, talvez uma nascente. Precisa encontrar água rapidamente, já lhe resta muito pouca da que trouxe. Em breve irá parar e procurar também no saco o que lhe resta para comer.
O trilho sobe em direcção ao arvoredo. A luz do fim do dia vai caindo, as sombras vão-se esvaindo compridas e ele vira-se uma última vez para ver o sol que se esconde nesse instante. Daqui a nada é noite... E quando volta a olhar o arvoredo em frente, a surpresa não podia ser maior. Muito ténue, um fiozinho de fumo surge subindo por entre as árvores lá ao fundo. Bate-lhe o coração mais depressa, aquilo é um sinal de vida, pensou. Quer dizer, um sinal de presença humana, só pode ser gente. Há com certeza ali gente, e avança mais animado na perspectiva de encontrar alguém, possivelmente uma casa, um abrigo...
Há um cão que ladra, e o som vem daquela direcção. O terreno sobe cada vez mais acentuadamente e ele já percebeu que, alguém que ali esteja, se não o viu já, agora que o cão ladrou já está avisado de que vem ali gente. É quase noite, e o cão agora não se cala. Ele receia que anoiteça e acelera um pouco o passo, embrenhando-se cada vez mais no arvoredo, tentando vislumbrar o fumo entre as árvores, como um farol. Quando finalmente avista o que parece ser uma palhota, vê ao lado o cão que ladra e de repente, quase tropeça num homem que está sentado numa pedra à sua frente. Tranquilo, dir-se-ia à sua espera. É um negro de idade indefinível, de barba e cabelos desgrenhados e que parece sorrir da sua surpresa.
- Vi o fumo e calculei que devia haver gente aqui. Disse, um pouco sem jeito, tentando disfarçar o susto e recuperar o fôlego.
O cheiro a fumo da fogueira no ar e o cão, esquelético, agora de mansinho a rondar-lhe as pernas, cheirando a medo. Mais tarde o negro dir-lhe-ia como achou bizarra a presença de um branco por ali. Há já muito tempo que tinha partido o último. Alguns ainda aguentaram os primeiros anos da guerra, mas aos poucos, um a um, mortos ou fugidos, nem um ficou. Já mal se via o que restava das casas que tinham construído, cobertas pelo mato e ruídas pelo tempo, até uma velha estrada que passara ali perto, por falta de uso, tinha desaparecido. Andaria ele à procura de alguma memória antiga, de algum lugar de infância? Mas quis respeitar o seu silêncio, e deixou-o a recuperar as forças e apaziguar o espírito. Se lhe quisesse contar de onde vinha e ao que vinha, era com ele.
Nessa tarde, muito antes do cão ter ladrado já ele se tinha apercebido lá longe da presença daquele homem caminhando. Quando acendeu o fogo, ainda hesitou em faze-lo, tinha a certeza que o fumo o atrairia até ali, mas resolveu fazer uma trégua com o mundo. Há quanto tempo não partilhava um jantar?
No terreiro frente à casa, uma pequena fogueira no chão ilumina com uma luz amarelada e trémula uma mesa tosca feita de troncos e tábuas, e ao lado, entre duas árvores, uma rede estendida. O cão continua a farejar curioso o recém chegado e o dono enxota-o com o pé enquanto tira do fogo uma panela fumegante e enegrecida pelo fumo, que coloca sobre a mesa. Senta-se e com um sorriso convida o outro para que se sente também. Dividiram a comida da panela e comeram em silêncio.
Confundindo-se com o fumo da fogueira, pairava em volta uma subtil e indefinível nuvem de mistério.
O negro falar-lhe-ia também da escola onde o seu pai um dia o deixou, miúdo, quando foi trabalhar para longe, para as minas, e do primeiro branco que viu. No caso, uma mulher. Tinha-se aventurado naquele desterro longínquo como professora, e ele a princípio estranhou muito a cor da sua pele, fazia lembrar cadáver, dizia, como aqueles que tinha visto uma vez a boiarem no rio. Fez-lhe muita impressão. Mas depois conheceu-lhe o sorriso, e o cheiro, ambos tão doces, e achou que cheirava a flores. Anos mais tarde viria a reencontrar esse cheiro e a saber que tinha um nome, e que vinha de uma planta que ele não conhecia. Era alfazema. Nunca mais deixou de sentir esse cheiro sempre que se lembrava dela, a sua primeira professora. Essa recordação vivia com ele desde aquela primeira vez em que ela o envolveu nos seus braços e o reconfortou num momento difícil. Nessa altura já se tinha esquecido que tinha cor de cadáver, e até achava graça porque quando ela se zangava, o que às vezes acontecia, ou quando se ria muito, mudava de cor, passando do branco ao cor de rosa, chegando quase ao vermelho. Os outros miúdos até diziam que ela tinha sangue de camaleão, coitadinha...
Depois de todos estes anos, lembrava-se agora de quando ela chegava ao seu lado e lhe dizia quase ao ouvido: Hossi, tens que escrever direitinho sobre as linhas. E lhe pegava na mão com carinho e o ajudava a escrever as letras mais difíceis.
Depois de terem comido, deixaram-se estar sentados em silêncio, ouvindo os sons da noite no mato e o crepitar do fogo ali ao lado. Esse silêncio avivava detalhes que provavelmente em contactos mais ruidosos lhes escapariam. Um pequeno gesto, um sorriso, um franzir de sobrancelha tomavam ali uma dimensão nova. Talvez noutra circunstancia houvesse ocasião para muitas perguntas e muitas explicações, mas ali não pareciam necessárias. O que não evitava uma ligeira inquietação no espírito de Hossi. Aquele branco que lhe apareceu ali meio perdido, vinha fugido, ou iria em busca de algo? Perguntava-se se algumas pessoas não andariam às voltas na vida, sem saberem se estão a perseguir uma ideia ou a serem perseguidas por ela. Mas absteve-se de qualquer observação. O outro, entretanto, parecia ouvir essa interrogação e essa dúvida dentro si. Mas naquele momento não era capaz de responder, sentia-se apenas reconhecido por aquele acolhimento. Foi bom ter vindo até ali e encontrarem-se, era a única coisa que poderia ter dito. E Hossi deve ter percebido. Levantou-se e fez-lhe sinal que era hora de irem dormir. Mostrou-lhe uma esteira enrolada junto à parede e indicou-lhe a um canto da casa o sítio onde poderia estende-la. Dos restos da fogueira tirou dois pequenos troncos ainda acesos e trouxe-os para dentro, deixando-os no chão junto à porta, para afastar o frio e os mosquitos, e deitou-se no outro canto.
Teve dificuldade em adormecer. Aquela visita inesperada acordara-lhe memórias antigas. Lembrava-se da escola, onde aprendeu a falar e depois a ler e a escrever em Português. E da professora, que ao mesmo tempo que ensinava aos alunos a sua língua, ia aprendendo a deles com eles. Na altura não ligou a esse pormenor, só muito mais tarde, já adulto, percebeu como isso era raro e pouco valorizado entre a população branca. Mais tarde, já homem, quando se lembrou de a ir procurar, soube com tristeza que se tinha ido embora. Uma denúncia de um chefe de posto, e mandaram-na embora juntamente com uns padres holandeses de uma Missão protestante. Andavam a estudar a fonética das línguas indígenas e a tentar criar e organizar uma escrita para elas. Com gramática, dicionários e tudo. Inventou-se uma história qualquer de incentivo à sublevação e foi o suficiente. Ficou a saber que afinal havia ainda mais injustiças, para além daquelas que ele próprio sentia na pele.
Acordou de madrugada surpreendido com um fenómeno que já tinha pressentido na véspera, pouco antes de adormecer. É que estava de novo a pensar em português!
Durante todo o tempo que ali viveu isolado, unicamente em contacto com a natureza, voltara à sua língua materna para pensar e organizar o mundo à sua volta. Era-lhe suficiente. Mas agora, com aquela presença, reencontrava uma linguagem e uma forma de pensar que julgava esquecida. Subitamente o mundo mudava de tamanho. Tantas coisas, tantas ideias lhe ocorriam agora e que pareciam desaparecidas, simplesmente por não serem verbalizadas.
Viera para ali viver depois que terminaram as guerras, não que houvesse algum motivo especial, apenas estava cansado de tantos anos de barbaridades e injustiças. Primeiro tinham-lhe dito que tudo era culpa dos brancos, e os brancos foram-se embora. Depois que era culpa da guerra... e foram muitos anos de guerra. E quando a guerra acabou, resolveu voltar à sua terra de origem e traçar sozinho o seu destino. Conhecia bem aquele sítio e achou que era um bom lugar. Tinha andado por ali em criança acompanhando o pai na caça, e nunca mais se esqueceu daquela nascente que brotava ali perto, rodeada de árvores e onde muitos animais vinham beber de madrugada. Há muito tempo que não tinha a companhia de um ser humano e às vezes dava por si a falar com o cão, outras vezes com os pássaros que costumavam esvoaçar por ali. Quando aceitou os medronhos que o outro lhe ofereceu à chegada, achou aquilo uma curiosa coincidência. Por várias vezes, quando se levantava cedo...